O abismo entre o ser e o ter
Onze horas de um domingo de primavera. Estou no Parque da Cidade. Céu nublado, mas o mormaço intenso faz parecer um dia de verão. Acomodado num banco, debaixo de uma árvore, leio o caderno de Cultura do Estadão. Muita matéria interessante, como a reportagem sobre a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Outra aborda o documentário sobre Maria Bethania; na página central alguém escreve sobre a orientação sexual de Mário de Andrade. Em sua crônica, Ignácio de Loyola Brandão, em poucas palavras, escracha o surrealismo do padre Kelmon. Aquele…
O que me despertou um interesse especial foi a crônica de Leandro Karnal sobre o consumismo. Entre citações de filósofos da Antiguidade Clássica e da atualidade, o historiador resume seu pensamento nesta frase: “A insatisfação permanente garante nossos impulsos de consumo. Nada busca nossa realização”.
Outro dia li um pensamento que reflete com propriedade essa crise de valores que assola a humanidade: “Consumo, logo existo”. Paráfrase do célebre pensamento de René Descartes – “Penso, logo existo”.
Estou equivocado ou é isto mesmo?: Consumir é ser. Se assim é, com certeza nossos valores mais nobres foram lançados à lata de lixo pela sociedade de consumo. Somos o que temos, representados pelas nossas posses e todo o glamour do nosso exibicionismo.
Como escreveu Karnal, “nada busca nossa realização. Tudo revela nossa falta, carências, desejos e uma espécie de “pedra de Sísifo”, que deve ser sempre rolada montanha acima”.
Segundo Bauman, citado na crônica, esse impulso é uma forma de fugir do próprio “eu” e adquirir um “outro”, feito sob encomenda.
Urge dissociar o ser do consumir, a menos que o produto, objeto de consumo, seja capaz de melhorar nossa visão de mundo e nos tornar sensíveis às carências do próximo.
Absorto nessa leitura, não me apercebi da aproximação de um senhor de meia idade. Ele me interrompeu para perguntar se uma árvore próxima era um eucalipto. Ele necessitava de folhas de eucalipto para fazer chá para sua mãe, acometida de forte gripe.
Em seguida, novamente minha atenção foi desviada por um jovem casal. Perguntaram-me se eu sabia da existência de jabuticabeiras no Parque da Cidade, pois encontraram, pouco antes, alguém carregando uma sacola repleta daquela fruta. Aproveitei o ensejo para movimentar um pouco as pernas e os acompanhei até o local onde havia jabuticabeiras.
Assim é a vida neste mundo de contrastes. Alguns necessitam e se satisfazem com coisas tão simples e banais. Outros se realizam com grifes, para dizer o mínimo. O abismo entre o ser e o ter é uma consequência da crise de valores.
Por Gilberto Silos
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