O amarelo noturno de Van Gogh
Todo adolescente vive em crise, mas cada um pende para o seu lado sombrio de forma específica, identificando-se com aquilo que tem mais afinidade.
Na minha, tinha aquelas crises existenciais intermináveis e me sentava à beira da cama com o queixo entre as palmas das mãos e os cotovelos apoiados nos joelhos. Era um gesto frequente e involuntário. Era assim que ficava todas as noites pensando na vida, no ser e no nada que nos rodeia. Perguntas desfilavam intermináveis sem respostas, a não ser aquelas que eu mesma criava dentro de mim. Respostas maleáveis, flexíveis, indeterminadas e não conclusivas, na espera que um dia, saberia. Mas confesso que muitas dessas perguntas, não tenho a resposta até hoje, quando estou à margem do Estige à espera do barqueiro.
Mas não posso deixar de mencionar duas coisas marcantes nessa fase sombria e bela: As obras de Van Gogh em seu eterno amarelo e os Noturnos de Chopin. Esses, foram os meus consolos na adolescência tão conturbada por dentro da alma, num corpo esquelético que relembro com saudade, afinal, ser magrela é o sonho de todos na maturidade.
Nas paredes não havia posteres de bandas, nem fotos de artistas famosos. Na minha parede havia as reproduções das pinturas de Van Gogh, com seus traços fortes/amarelos/azuis/alaranjados/escuros/sombreados/desconsolados. Essas belas obras faziam-me suspeitar que não estava sozinha nesses sentimentos melancólicos, sombrios e sem causa ou com uma causa tão profunda, tão profunda, que era difícil cavar.
A reprodução do “quarto de Van Gogh”, pendurado a minha frente me remetia aos momentos do pintor em seu quarto, assim como eu, ficava ali a pensar sobre tudo. O “trigal com corvos”, acelerava meu coração, num desejo mórbido de fim de tudo e ao mesmo tempo um revirar de sentimentos que iam e viam como o vento de um dia nublado. E isso tudo regado a um Noturno de Chopin, um disco de vinil que só me desfiz no ano passado, quando doei para nosso amigo Paulo Dylan, colecionador de vinil.
E lembro hoje de tudo isso, porque assisti “Com amor, Van Gogh” (pela segunda vez) que foi corroendo minha alma com as lembranças de tudo – do meu quarto, das reproduções e da música – que ficou tão distante, naquele passado que passou, como o brilho de uma “noite estrelada”. Hoje “como as batatas”, como alguém que já plantou “girassóis” no quintal, igual o “semeador”, só para apreciar o amarelo da vida. Criei muitos poemas amarelos para aliviar a minha dor de vivente e sobrevivente nesse mundo vão. Mas tudo ficou lá atrás, como num filme surreal.
Já vi os campos de trigo amarelo na minha infância, com os corvos voando por todo lado. Hoje vejo smartphones espalhados entre os zumbis da nossa contemporaneidade e me lembra “os prisioneiros em exercício”.
Não sou saudosista, mas lembrar dessas melancolias, me tocou profundamente. Meu coração ficou apertado e até doeu um pouco. Então, fui ouvir os noturnos de Chopin, hoje sem disco de vinil, basta acessar uma plataforma de streaming.
Elizabeth de Souza
Veja o trailer de “Com Amor, Van Gogh” – Recomendo que assista o filme
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