O cinema e o sentimento de infância – Artigo sobre o cinema e a criança #TBT
Por Filipi Gradim -12 de outubro de 2020
Quando repassamos na mente as emoções que experimentamos com a sétima arte, tendemos a projetar novamente o filme que assistimos, mas na imaginação. Sem nos darmos conta desse movimento (que tem certa autonomia), terminamos por fazer cinema do cinema, filme do filme; e, eis ali, não diante, mas dentro de nós, aquele universo de imagens que a experiência estética fílmica forneceu; experiência essa que vem acompanhada, a bem dizer, de uma série de impressões sensíveis e de marcas emocionais que ficaram tatuadas na alma. Estão tatuadas em mim as imagens de um sem número de filmes acumuladas e guardadas no acervo da memória afetiva que dura o tempo da vida. O cinema é dotado de tal poder impressionante.
Dentre as imagens que se destacam na minha cinemateca, no meu acervo emocional, se encontram filmes em que crianças desempenham o papel de protagonismo. Não é preciso fazer muito esforço e de súbito me aparecem as imagens dos guris em cena: Elliot de ET – o extraterrestre (1982), T.J de O campeão (1979), Cole Sear de O sexto sentido (1999), Damien de A profecia (1976) ou o Totó de Cinema Paradiso (1988). De todos os filmes citados, o que me marcou foi o talento dramático dos atores mirins. Pensava em como a criança, tão pouco experiente, transmitia emoções com uma profundidade que, nem sempre, o adulto conseguia. Quando fui estudar teatro entendi que se tratava de sinceridade cênica e que o ator, quando é competente, tem por dever ser o mais sincero possível para que acreditemos em sua atuação.
Creio que a criança sai ganhando do adulto no mérito técnico, por razões que a própria inocência infantil explica. Mas nem sempre (e nem em todos os meios) foi assim. A criança demorou quase dois milênios para alcançar um lugar de protagonismo na sociedade. Até que uma criança pudesse ser incluída em uma história, que ocupasse um papel na narrativa escrita pelo adulto foi preciso muita luta em defesa de seus direitos. E o cinema, que é filho do século 20, muito tempo depois pôde nos dar o prazer de inserir uma criança no centro nervoso de um filme, e pôde fazer a trama girar em torno não dos valores humanos, mas dos valores infantis.
Quando digo “nem sempre foi assim” é porque a criança que entendemos hoje, alinhada segundo o vocabulário do senso-comum e segundo princípios impetrados na Constituição, tardou a ser reconhecida em sua gentidade, em sua particularidade de pessoa. A criança concebida como “sujeito de direito”, sobre o qual se atribui “mais direitos que os conferidos aos demais cidadãos”, o sujeito previsto em lei a exigir “direitos específicos” que assegurem “o desenvolvimento, o crescimento, o cumprimento de suas potencialidades” é uma conquista da modernidade e data de poucos séculos, em relação à longa história da humanidade.
O passeio pela história social da infância descreve bem a trajetória que levou a criança a migrar de condição, deixando de ser sujeito de dever para se tornar sujeito de direito. O notável livro História social da criança e da família (1973), de Philippe Airès, nos mostra tanto a topografia social em que a criança era inserida quanto o conceito que lhe atribuíam e a forma com que o empregavam nos costumes. No entender conceitual da sociedade, a criança era reconhecida pela idade da vida, uma vez que a idade é “uma das formas comuns de conceber a biologia humana” em relação com “correspondências secretas internaturais”, diz Airès.
Na Idade Média, a contagem era feita em harmonização com os astros. Se sete são os planetas, então, cada idade de vida corresponde a um intervalo de sete anos. Logo, a infância cobre o período que vai do nascimento até os sete anos. É o período de formação dentária e, por isso, ainda não está construída a linguagem, dada a inabilidade da boca desdentada. Infante “quer dizer o não falante”, o indivíduo da espécie humana privado de linguagem. Depois, dos sete aos quatorze, vem a puerilidade, na qual a linguagem existe, mas em estado de pureza.
O esquema de idades formou o esquema social. Se na infância, “nem força nem virtude abundam”, na puerilidade começa o crescimento e, na adolescência, há o desabrochar da flor. Na Antiguidade, essa ordenação da vida dirigia o sentido social. Então, o infante, o pueril e o adolescente deveriam ser formados pelos adultos em um regime de educação para que modificassem seu caráter; o que significava evoluir e aprender pouco a pouco a não ser mais a alma governada pelos impulsos para se tornar a alma governante e consciente de suas forças. A criança tinha valor apenas enquanto participava do programa idealista/humanista greco-latino.
O rigor socializante da Antiguidade forçou a criança a se realizar como um homem em miniatura que deveria seguir o modelo ético de vigilância dos instintos, de distinção crítica entre o bem e o mal, de habilidade lógica, gramatical, corporal e manual. A Idade Média seguiu em parte esse princípio, mas relegou à criança um lugar indistinto na sociedade. Cada vez mais próxima do adulto, a criança era ignorada enquanto individualidade infantil. Misturada à multidão, a criança não tinha seu lugar e, portanto, não protagonizava a cena e muito menos tinha direitos próprios à sua condição existencial. Desempenhava, com os pais ou sob a guarda de outra família, funções de trabalho e cooperava em todas as atividades da família. Era validada na qualidade de colaboradora na obtenção de riqueza e de proventos da propriedade. Compartilhava de hábitos adultos: jogos de azar, rinhas de animais, festejos populares, etc.
Na Antiguidade, a alma da criança (quando batizada) garantia-lhe o paraíso divino. O mesmo pensavam os medievais, para os quais as crianças eram anjos. Mas nunca de fato eram crianças em sua pessoa; estavam divididas entre o humanismo e o cristianismo e serviam a ambos os propósitos. Porém, com o advento da modernidade e com a ascensão burguesa, a partir do século 16, a criança entrou para a pauta de reivindicações que vinham tanto da parte dos moralistas quanto da parte dos eclesiásticos. Começava o protagonismo infantil. A criança deveria se distinguir da multidão. Ela não era mais o que Airès chamou de “companheira natural do adulto”. O seu mundo é próprio, pois as exigências implicadas nesse ser são específicas e não universalizadas e generalizadas como se a criança fosse deveras um homem em miniatura.
A sociedade, a partir da modernidade, deslocou a criança das bordas ou do plano de fundo, para o centro das preocupações e, com isso, surgiu, segundo afirma Airès, a família moderna. Houve o despertar para o sentimento de infância. Passou-se a admitir que a criança, psicológica e moralmente, deve ser discernida do mundo adulto, para se preservar das impurezas de tal mundo e para que possa ela própria reinar em algum mundo que lhe seja comum. A partir daí, se percebeu que a criança tem uma linguagem e que essa linguagem é a alegria, o lúdico, o fantástico, o fluido, o despreocupado. Para garantir o reconhecimento desse sentimento de infância, a sociedade se valeu do estatuto que servisse de fundamento jurídico.
A criança não é querubim, não é miniatura nem mimo do homem. A criança é polifonia musical e complexidade de linguagens que não raro nos arremessa ao inexplicável. Aristóteles e Agostinho se equivocaram enormemente em inferiorizar esses seres tão preciosos, taxando-os de “ilógicos” ou “frutos do pecado”. O século 20 prova isso com certo misto de empatia e crueldade e é o cinema que explana o novo lugar da criança. Analisando algumas obras fílmicas que me tocaram, vi em Charles Chaplin o movimento inaugural do protagonismo da criança no cinema. É importante frisar que não é regalia do cinema centrar o olhar narrativo para a mundo da criança. Charles Dickens, com Oliver Twist, Mark Twain, com As aventuras de Tom Sawyer e Lewis Carrol, com Alice no país das maravilhas, erguem na literatura monumentos que exaltam as potências infantis a um grau até então inexplorado.
Mas, com O garoto (1921), Chaplin fez do cinema um espaço privilegiado de atuação da criança, assegurando uma nova vitrine de exposição do protagonismo que veio sendo trabalhado desde o advento da modernidade. Está certo que o filme não narra o drama da criança em seu mundo, isolada do adulto, mas já se vê a tentativa de “fazer um retrato da infância e da paternidade e nos mostrar como um garoto e um homem podem se dar bem no nosso mundo” individualista. O garoto cresce e, com cinco anos, se veste à moda da infância medieval, como se fosse um “homenzinho”. Carlitos, por sua vez, parece uma criança grande que compartilha com o garoto, ao mesmo tempo, o mundo do sonho e o mundo da gravidade.
O excelente ator mirim Jackie Coogan impressiona pelo grau de sinceridade e de comoção de sua atuação irretocável. O brilhantismo dramático de Carlitos não ofusca Coogan, porque “todas as crianças de uma forma ou de outra têm gênio. O truque consiste em fazê-lo manifestar-se”, dizia Chaplin, com razão. Criança é linguagem pantomímica e, por isso, manipula o gestual expressivo fazendo de seu corpo uma massa de modelar imagens. Já em Pixote, a lei do mais fraco (1980), de Hector Babenco, o gênio da criança não se reduz à gestualidade, mas à espontaneidade. Isso quer dizer que, se abunda no corpo do menino Jackie Coogan uma carga teatral decisiva para a narrativa clownesca de Chaplin, em Pixote, Babenco optou pelo simples.
Pixote é vivido por Fernando Alves Pinto que Babenco transpôs da periferia de São Paulo direto para o cinema. De origem pobre, Fernando não era profissional, mas o grau de sinceridade com que atuou nos perturba do início ao fim do filme por ser o real e não uma representação do real. A criança é a protagonista da cena, mas inteiramente apartada do universo infantil. De modo que a inocência, o lazer e o acolhimento se dissipam dando lugar à delinquência e à violência urbana. Quando vimos Pixote andando sozinho na linha do trem, depois de ser expulso do colo da prostituta Sueli, e de ter entendido que “cada um se vira como pode”, percebemos que o eixo do problema moderno gira em torno de direitos que o sujeito tem enquanto criança.
No belo Adeus, meninos (1987), de Louis Malle, ocorre o mesmo drama da infância roubada, com a diferença que a criança é violada dentro do seu mundo privado, que é a escola, pelo mundo doentio do adulto. Em meio à França ocupada pelos nazistas, o menino prodígio Jean Bonnet, vivido por Raphael Fejtö, precisa esconder a real identidade, já que, por ser judeu, está escondido em uma escola católica. Seu colega de classe, Julien Quentin (Gaspard Manesse) se aproxima do menino perseguido, estabelece um elo afetivo e intelectual e percebe que algo está errado. Julien não compreende o absurdo: por que odeiam e matam judeus? Até que a denúncia leva os nazistas a invadirem a escola, prendendo Bonnet e o conduzindo para o campo de extermínio em Auschwitz. Termina ali a inocência de uma idade que sequer poderia imaginar que ideologias supremacistas pudessem ser implacáveis inclusive com crianças.
Por fim, em Jardim secreto (1993), Agnieszka Holland, com uma sensibilidade ímpar, aborda o sentimento de infância por um viés inverso ao de Malle e Babenco. Nesse filme, em vez de contrair a doença do mundo adulto, a criança é o instrumento que promove saúde e cura. A criança é o ser frágil, a isca do perverso mundo adulto, como no caso de Bonnet ou Pixote? A menina Mary Lennox, vivida pela incrível atriz mirim Kate Maberly, nos abre a possibilidade de contrapartida da criança. Mary é órfã e guarda a dor de ter perdido os pais em um terremoto na Índia, razão que a levou se mudar e viver na Inglaterra, na mansão do lorde Craven, seu tio.
Movida pela teimosia e pela inocência, Mary descobre a existência de um jardim secreto trancado nas imediações da mansão. Com ajuda de menino Dickon, cujo contato com os animais o permite acessar segredos da natureza, o jardim que estava abandonado e amaldiçoado revela-se “cheio de vida” e “vivo como nós”. Nesse meio tempo, conhece o primo Colin, tratado em regime de cárcere e convencido de portar uma doença mortal. Em seguida, o sorumbático lorde, enlutado pela perda da mulher, lhe concede terra para “plantar sementes” e “fazer algo crescer”. Mary e Dickon empreendem o replantio do jardim, que volta a florescer, e apresentam-no a Colin. Curado da solidão, o menino se descobre saudável e aprende a viver a infância desperdiçada, além de se afeiçoar ao pai, que também é curado das melancolias. Nesse filme é difícil conter as lágrimas diante do poder que tem a criança de plantar a vida e o amor onde menos se espera.
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