O Homem de Papel que desafiou Hitler – Por André Luiz Pereira Nunes

O Homem de Papel que desafiou Hitler – André Luiz Pereira Nunes

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre a lenda do futebol austríaco, Mathias Sindelar, o “Homem de Papel”

Sindelar, jogador austríaco – Foto: Getty Images

Por André Luiz Pereira Nunes -31 de agosto de 2020

A seleção da Áustria não é exatamente uma referência em Copas do Mundo. Seu melhor retrospecto ocorreu em 1954, quando ficou na terceira colocação. Sua participação mais recente foi na Copa da França, em 1998. Mas, mesmo tendo apenas sete presenças em mundiais, o país merece ser lembrado pelo que representou o seu maior astro de todos os tempos, apelidado de “Pelé do Danúbio” e “Homem de Papel”.

Matthias Sindelar, craque da década de 30, era alto, magro e se destacava pela leveza, velocidade e habilidade em campo. Sua presença fora fundamental para que a seleção austríaca ficasse conhecida como “Wunderteam” (time maravilha). Vencedora da Copa Internacional da Europa Central, em 1932, chegava à Copa de 1934 como uma das favoritas, tendo vencido ou empatado 28 das 31 partidas anteriores ao mundial.

Apesar de ter eliminado França e Hungria nas oitavas e quartas de final, respectivamente, os austríacos capitularam diante da anfitriã e futura campeã Itália, na semifinal, cotejo que os especialistas europeus definiram como decisão antecipada. Porém, cabe ressaltar que a seleção italiana era formada por atletas de várias nacionalidades. Além de italianos, contava com quatro argentinos vice-campeões, em 1930, e até um brasileiro: Filó. Benito Mussolini, ditador à época, e anfitrião do torneio, não medira esforços, alguns nem um pouco honestos, diga-se de passagem, para que seu time fosse campeão.

Por ser nascido em 1903, Sindelar provavelmente não teria condições físicas de atuar na Copa de 1938, pois naquela época a carreira de um jogador era extremamente curta. Apesar disso, aos 35 anos, seguira sempre como titular da equipe, sendo imprescindível na campanha do vice-campeonato de seu país nas Olimpíadas de 1936, novamente com derrota para a Itália.

O próximo desafio seria a Copa de 1938, competição à qual a Áustria havia se classificado. Entretanto, o destino tinha outros desígnios. Em 12 de março, a apenas três meses do início do mundial, Adolf Hitler invadiu a nação para anexá-la à Alemanha nazista. Em um mês a jovem república parlamentarista se transformara em mais uma província do Terceiro Reich. Entre várias das intenções, uma delas era emular Benito Mussolini. Porém, havia uma ressalva. Os alemães não hospedariam a competição, disputada dessa vez na França, e tampouco formavam uma grande seleção. Tendo invadido a Áustria, Hitler pensava em ter resolvido a equação, pois contaria com os austríacos para reforçar a Alemanha.

Contudo, ao contrário de vários de seus companheiros, Sindelar não só se recusou a ser alemão como ainda rechaçou a ordem do Führer em integrar o time alemão. Provavelmente não existe relato similar no futebol de maior atitude de destemor e fidelidade do que a protagonizada por esse craque, injustamente esquecido nos dias atuais, que pagou com a vida a recusa em cumprir ordens do maior crápula da história da humanidade.

Setenta e duas horas após a anexação da Áustria, Hitler solicitara que oito dos principais jogadores da seleção austríaca fossem imediatamente incorporados ao escrete alemão. Ganhar a Copa do Mundo seria uma questão de honra para o fortalecimento do regime nazista, além de igualar o feito protagonizado por Mussolini no mundial anterior. Cabe ressaltar que a Áustria seria candidata favorita ao título máximo, pois vivenciava a sua melhor fase de todos os tempos. Goleara a Alemanha por 5 a 0 e 6 a 0, a Suíça por 6 a 0, a Escócia por 5 a 0, e a grande rival Hungria por 8 a 2, com três gols de Sindelar. A “Escola do Danúbio”parecia mesmo não ter rival à altura. Quiseram todavia os deuses do futebol que a escalada rumo ao topo fosse interrompida ironicamente por um austríaco de nascimento, o qual não costumava se orgulhar de sua origem.

Hitler resolveu então celebrar a incorporação do país vizinho justamente com uma partida de futebol envolvendo a Alemanha nazista e os austríacos, os quais fariam a última partida por sua seleção. Sindelar, não só atuou brilhantemente como ainda comemorou seu gol, o primeiro do jogo, de maneira efusiva e extravagante defronte ao palco das autoridades nazistas numa clara demonstração de deboche e desafio. A derrota por 2 a 0, além da provocação do craque austríaco, foram um verdadeiro acinte para as autoridades invasoras. Sindelar ainda não sabia, mas esta seria a sua última partida oficial.

Joseph Goebbels, ministro da Propaganda Nazista, ainda acenou com a proposta de que todo o mal-estar seria devidamente esquecido caso Sindelar defendesse a Alemanha na Copa do Mundo de 1938 e o time fosse campeão. O craque recusou a proposta alegando estar “gravemente machucado”. Ainda avisou estar se aposentando dos gramados oficiais. A negativa selara o seu destino.

A vaga da Áustria não foi preenchida. A FIFA ainda chegou a convidar a Inglaterra para substituí-la, mas os ingleses não aceitaram a proposta. Mesmo contando com alguns austríacos, a Alemanha acabou eliminada de cara no mata-mata pelos suíços. A vergonha fôra tamanha que vários amigos de Sindelar foram perseguidos. O craque resolveu então abrir uma cafeteria, mas os nazistas não lhe davam trégua, arrumando problemas todas as semanas.

Seis meses mais tarde, em 23 de janeiro de 1939, o corpo de Mattias Sindelar foi encontrado por bombeiros de Viena ao lado de sua companheira, a italiana Camilla Castagnola. Contava com apenas 35 anos. A versão oficial apontou a causa da morte como asfixia por vazamento de monóxido de carbono, um acidente relativamente comum naquele tempo. Apesar disso, não faltou quem suspeitasse que se tratasse de suicídio por conta da pressão exercida pelos alemães, ou mesmo de assassinato cometido pelos nazistas. Anos depois, foi revelado que a Gestapo investigou Sindelar por suspeitas de que ele fosse “pró-judeu” e “social-democrata”.

Sindelar foi enterrado no mesmo cemitério, na capital, onde repousam os restos mortais de Brahms, Beethoven, Strauss e Schubert. A rua na qual o “Pelé do Danúbio” nasceu foi rebatizada com seu nome. Estima-se que o funeral do craque levou de 15 a 20 mil pessoas ao Cemitério Central de Viena. Em 1998, foi eleito o atleta austríaco do século.

André Luiz Pereira Nunes é professor e jornalista. Na década de 90 já escrevia no Jornal do Futebol e colaborava com Almir Leite no Jornal dos Sports. Atuou como colunista, repórter e fotógrafo nos portais Papo Esportivo e Supergol. Foi diretor de comunicação do America.

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