O HOMEM QUE PLANTAVA AVES – Gociante Patissa

Data de leitura:                       01-04-2025 a 07-04-2025                             Nome: Luísa FRESTA

Ficha de leitura

Título:                                      O HOMEM QUE PLANTAVA AVES

Autor:                                       Gociante Patissa

Editora:                                    Editora Acácias ©

Coleção/ Edição:

Ano de publicação:                 2018

Género literário:                      Contos

Número de páginas:               155

 

Resumo: Numa noite lisboeta, este livro há muito desejado caiu-me no colo; e o autor plantou também aves em mim, cujo voo libertador trouxe consigo melodias de esperança, graça e identidade.

Gociante Patissa dedica também este livro “ao lugar onírico chamado pátria”. Esse território simbólico e conceptual poderia servir para começar esta reflexão sobre identidades plurais, porém unas, no sentir e no modo de viver.  Como benguelense sinto-me particularmente  incluída nas quinze narrativas desta obra, pelo seu humor, idiossincrasia e ritmo; pela candura e malícia dos diálogos e pela especificidade da linguagem e do pensamento. Não temos de ser todos saídos da mesma forma, mas as nossas singularidades espelham complementaridade, diversidade e riqueza cultural, e uma perspetiva alargada de cidadania, que nos engrandece e apazigua.

Gociante Patissa demonstra um domínio perfeito da linguagem formal, cheia de subtilezas, e da oralidade sublinhada nos divertidos diálogos, incluindo nos contos diversos apontamentos que esclarecem uma ou outra expressão da língua umbundu. Ouvir a interjeição “haka”, que nunca deixou de fazer parte do meu vocabulário, foi uma das descobertas mais encantadoras, que me levou a ler alguns contos em voz alta. Trata-se, portanto, de uma obra aberta, não apenas em intenção dos leitores angolanos nem dos que têm raízes na região. É uma obra universal, divertida e rica, que não deixa também de ser um importante documento do ponto de vista societal e etnográfico.

O livro abre com A MEIA-VIAGEM DO SENHOR SERVIÇO, uma história que põe em evidência os desafios da passagem à reforma, as relações familiares, a partilha diária que pressupõe o matrimónio e o estatuto de cada um na família. Há uma dimensão ética que atravessa o conto e que se repetirá em muitas histórias, sem nunca ser moralista. O autor também inclui nesta obra o conto homónimo, que se baseia, segundo o próprio, numa narrativa que ouviu do seu avô paterno. As ligações familiares são, portanto, igualmente celebradas, não apenas nos conteúdos ficcionados mas na sua génese. O HOMEM QUE PLANTAVA AVES enfatiza a problemática da deficiência física, a astúcia, inteligência e integridade. E evidencia também o valor do trabalho, a importância do talento e dedicação, e a vocação intrínseca e espontânea do romantismo.

“(…) Não é só com as pernas que corremos, é com o pensamento. (…)

 

P.25

Noutras narrativas depreendemos que o narrador se cruza episodicamente com o próprio autor. Um bom exemplo é a arte e técnica da fotografia profissional associada a um dos seus personagens: sabemos que o próprio autor é acessoriamente um exímio fotógrafo, ainda que outras facetas das suas competências tenham tomado a dianteira.

VOCÊ NÃO ME CHAME QUERIDA é uma narrativa também marcada pela exaltação da ética, que o narrador não apresenta como regras invioláveis, mas sobretudo como uma estratégia de convívio salutar em sociedade. Com muito humor e delicadeza, o conto exala sensualidade e desejo,  caraterizando as possíveis  respostas femininas ao assédio, assentes na diplomacia, intuição, integridade e inteligência.

De salientar também as críticas bem-humoradas à petulância e à burocracia, uma arte tão minuciosamente aprimorada entre nós. Esta obra traz-nos, por outro lado, importantes apontamentos culturais, com provérbios, notas sobre nomes, termos e práticas locais. Não apenas as descrições são profundamente sulistas, mas todo o pensamento, comportamentos e ritmo de vida. Marginalmente há espaço para relatos mais dramáticos, que enfatizam memórias de guerra e trazem a lume a questão da irmandade em contextos extremos de vulnerabilidade. Outro pormenor curioso é a perceção da virilidade e o corporativismo masculino, a empatia que se pode gerar espontaneamente entre homens sobre questões que os afligem e que só partilham, a custo, com profissionais.

 

Refira-se ainda a insistência do narrador sobre aspetos como o machismo ou a exigência desmesurada que recai sobre mulheres em cargos de chefia. O apontamento, sempre com uma nota de humor, insere-se no contexto local, mas pode ser comparado ao que vive na atualidade, noutras latitudes.

“(…) O relatório da sindicância fechava com a frase « Ainda era só isso, obrigado » (…)”.

O livro fecha com a adaptação de uma fábula de cultura Umbundu (PORQUE É QUE A CAUDA DA LAGARTIXA CAI?). Talvez, como eu, o leitor não consiga responder sozinho a esta questão nem às grandes interrogações da humanidade. Daí a importância de navegarmos na ficção de Patissa, fortemente influenciada pela realidade da época, retratada com mestria, leveza e elegância nesta obra instrutiva de agradável leitura.

Loading

Sobre Luisa Fresta 45 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

Seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta