O ladrão de sotaques

O homem parecia de borracha. Estou a referir-me à sua capacidade para adaptar-se a outros idiomas, e a outros sotaques dentro da sua língua. Não tinha limites nem pudor, o sujeito: falava um minuto com alguém e logo se apropriava do seu sotaque fazendo-o seu com uma tal propriedade que fazia vibrar de empatia o seu interlocutor mais distante.

Não tinha controle sobre a sua pronúncia, de tal modo que bastava que os seus olhos mergulhassem no pequeno ecrã do telemóvel para que, através do indicativo do país ou da região, os seus lábios se posicionassem para logo imprimir aquele timbre característico de quem lhe ligava. Uma vez fotografou-se no momento em que atendia uma chamava, e ao ver a foto foi tomado por um calafrio. Aquela cara não era a sua, a expressão era-lhe estranha, o fulano carregava no semblante uma história que desconhecia e uma vida que lhe era alheia. Decididamente, não era ele.

A sua voz foi, certa ocasião, registada, no decurso de uma investigação policial; através de sofisticados aparelhos e de especialistas na matéria chegou-se a um consenso fácil ao cabo de menos de meia hora: o homem era sul-americano, quase de certeza uruguaio,  com passagens frequentes por um país francófono e alguns tiques tipicamente parisienses. A linguagem era cuidada e erudita aqui e ali, indiciando o percurso de um indivíduo com estudos superiores e um elevado nível cultural. A utilização recorrente de algumas expressões em detrimento de outras igualmente coloquiais, indicavam não apenas a sua origem geográfica e sócio-cultural mas também uma inclinação para valores reclamados pela esquerda tradicional. Era claramente jovem e habituado a falar em público com o à-vontade que proporcionam certas profissões: professores, advogados, políticos, vendedores, jornalistas.

Finalmente, quando a polícia o confrontou, encontrou apenas um homem banal e sem sotaque, um cidadão comum da grande urbe, que em nada correspondia aos resultados da investigação, cujo processo foi arquivado sem glória confirmando/ consubstanciando a excepção dos méritos do sistema. Mandaram as máquinas para conserto, reciclaram os técnicos e tentaram abafar com pouco êxito o vergonhoso caso de manifesto insucesso. E o homem continuou os seus dias sem história, alheio a si próprio, procurando nas vivências alheias um sotaque que justificasse a sua própria existência.

Mas houve um dia (há sempre um dia assim na vida dos homens vulgares) em que atendeu uma chamada de uma menina que tentava vender-lhe um serviço de redes móveis. A menina era brasileira e ele criou um sotaque só para ter tema de conversa; no final do diálogo rematou:- Olha, eu sou brasileiro, estou aqui de passagem, por isso não perca seu tempo comigo. Ao que a menina respondeu: -Você não é brasileiro, você é um italiano que aprendeu a falar português com paulistanos. Diria que descende de alemães e viaja com frequência a algum país africano, talvez Angola, ou Moçambique- por outro lado noto alguma musicalidade do francês na sua entoação. Estou certa ou estou errada? Pela primeira vez na sua vida: sentiu-se compreendido, desnudado; aquela mulher entendeu até as vidas que construiu dentro da sua mentira, desconstruiu sotaques roubados, inventados, plagiados, clonados e aperfeiçoados, redescobriu o falsário dentro dele. E aceitou-o como era. Sentiu que tinha chegado o momento de falar com o seu próprio sotaque, mas descobriu com horror que não o tinha.

Publicado originalmente no blog de Livros de Ontem, a 11-09-16

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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