O mistério de Elisa – Capítulo 3

Por Milton T. Mendonça

O mistério de Elisa – 3º Capítulo

Elisa abriu os armários e encontrou uma quantidade de roupas fora do normal. As cores vivas variavam de tonalidade como um jardim na primavera. Sapatos, cintos, bolsas estavam penduradas, ou acondicionadas em lugar feito sob medida, esperando para ser usadas. Pegou a caixa de polímero transparente sobre o móvel e deslizou os dedos sentindo sua textura. Nunca vira nada igual. Fora lapidada à mão tinha quase certeza. Era uma obra de arte. Encontrou o dispositivo imperceptível aos olhos ao passar os dedos em uma das faces. Sentiu um relevo e o apertou por instinto. Ouviu o clique pela terceira vez naquele dia e a tampa pulou deixando-a ver uma quantidade formidável de adereços em seu interior. Anéis, brincos, pulseiras, correntes variadas e multicores foram aparecendo conforme ia depositando sobre a cama. Pegou um anel e virou-o contra a luz, somente para perceber que não existia um foco de luz no quarto, a luminosidade era distribuída por todo o ambiente a partir da parede. “A mesma tecnologia do elevador” – pensou consigo mesma maravilhada – A pedra do anel cintilou em suas mãos. “Esmeralda verdadeira!” – exclamou entusiasmada –“E deste tamanho! Deve valer uma fortuna”.

– Elisa! Venha ver uma coisa!

João apareceu na porta. Sua agitação a perturbou e por um segundo sentiu medo. Acompanhou-o e o viu parar no parapeito da grande janela do terraço, olhar para fora e se virar em sua direção. Seu sorriso era contagiante.

-Veja! Apontou para o horizonte.

Aproximou-se e não conseguiu acreditar em seus olhos ao ver o mar ao longe e uma imensa cidade toda iluminada abaixo, acompanhando o relevo do terreno.

– Como pode! Perguntou para João que sorria feito criança.

– É uma civilização perdida – respondeu alegre admirando a paisagem.

– Perdida não é! – murmurou maravilhada.

Ao longe se via a baía em forma de ferradura com uma ponte pênsil belíssima saindo de uma avenida larga e arborizada, no canto direito de onde estavam. Deslizava suavemente em curvas até o meio da baia, bifurcava se abrindo como o bulbo de uma flor estilizada e, enquanto um braço voltava à margem alguns quilômetros à esquerda retomando a avenida que era o berço de todo o trafego da cidade, o outro se dirigia para a divisa do mar aberto se deitando sobre o oceano, às portas de um porto todo de vidro onde barcos com um formato pouco convencional esperavam passageiros ancorados em um amplo cais. Olhando para baixo, no vazio deixado pelo desvio da ponte, onde deveria ter um abismo, um palácio com torres, pátios, estufas, cascatas e um lago com centenas de flamingos estava encravado como a jóia em um anel real.

Na orla do mar um imenso jardim cobria todo seu perímetro e se afastava muitos metros da margem. Bancos dispostos em círculos, retângulos e trapézio foram distribuídos randomicamente por toda área criando nichos onde grupos de pessoas podiam sentar e conversar entre flores coloridas, plantadas seguindo desenhos com uma lógica própria e diferente de tudo que Elisa vira até aquele momento. Ela estava eufórica.

O teto muitos metros acima era azulado e emitia uma luz forte como se fosse um dia de verão, estavam próximo ao meio dia.

– Que maravilhoso! Exclamou estupefata.

– Como é possível? Olha os prédios…

Elisa virou a cabeça e olhou para os prédios assombrada, centenas deles, como estalactites saiam do teto e se fincavam no solo rochoso. Como acabamento muita cor misturada a alguma resina vitrificada. Era lindo de se ver. Milhares de janelas, umas abertas outras fechadas encheu Elisa com uma sensação de curiosidade. Na base dava para ver calçadas e avenidas cortando toda extensão como uma tabela onde cada célula circular fora preenchida com um edifício, mas tendo a preocupação de deixar espaço suficiente entre eles para ver o mar.

– É de perder o fôlego.

Um roçar de tecido alcançou o ouvido de Elisa que estava preste a dizer mais alguma coisa. Voltou-se assustada e, parada com as mãos entrelaçadas, no colo, uma linda moça esperava pacientemente.

– Paz esteja com todos! Falou com um sotaque indefinido.

Elisa ficou parada observando a visita atentamente. – “Veste-se como uma grega” – pensou espantada – “se não fosse o colorido”.

Aproximou-se com a mão estendida.

– Bom dia! – Exclamou, esperando ser correspondida.

A moça levantou a cabeça e olhou direto para sua pupila, mantendo as mãos onde estavam. Seus cabelos negros cortado a meio caminho do ombro deixavam seu belo rosto excessivamente branco, quase albino. Mas não era, dava para ver os pigmentos ainda existentes em sua pele alva. Inclinou-se levemente fazendo-a baixar a mão constrangida.

– Gostaríamos que compartilhassem conosco a refeição matutina.

Elisa voltou-se para João que observava a moça boquiaberto.

– João! Exclamou zangada.

– Vamos, vamos! Respondeu sem desviar os olhos.

A jovem mirou João por algum instante girou nos calcanhares e ordenou com uma entonação menos formal.

– Siga-me, por favor!

Entrou no salão com passos firmes, contornou a mesa de centro e se dirigiu à porta de entrada. Abriu-a e olhou para trás, os dois a seguiam em silêncio.

O carro elétrico os esperava do lado de fora da porta. Foram transportados através de um corredor carmesim que os levou sempre para baixo em uma espiral atordoante. Saíram em uma avenida movimentada repleta de transeuntes em trajes característicos que lembravam os povos da antiguidade. A liberdade com que usavam as cores e o prazer nas misturas mais inverossímeis era o que diferenciavam e traziam para a modernidade as vestimentas daquele povo misterioso. Todos eles excessivamente brancos, o que era acentuado pelas pinturas usadas nos cabelos, nos lábios e unhas.

Continuaram em frente. Cruzaram várias Avenidas e puderam observar um pouco da rotina dos cidadãos daquele lugar secreto. Depararam-se com hábitos não muito diferentes daqueles de onde vieram, pelo menos enquanto caminhavam de mãos dadas pelas calçadas repletas de símbolos herméticos aos seus olhos de visitante: Com sorriso fácil e andar delicado o povo discutia os problemas do dia-a-dia uns com os outros.

– Não vi nenhuma criança até agora, você viu? – João perguntou quebrando o silêncio.

– É mesmo, ainda não! Devem estar em alguma escola…

– Pode ser…

Ao ouvir o comentário, a moça voltou a cabeça sorrindo em direção de Elisa.

– Nossas crianças estão sendo preparadas para a vida adulta. Logo poderão vê-las… Se isso for de seu agrado.

Quarenta minutos depois o automóvel foi parado pela guarda que protegia o edifício no topo da colina. O Soldado vestindo um uniforme monocromático e com uma ótima camuflagem, somente foi visto ao estacionarem no lado de fora do portão – aparecera como um relâmpago – acendera, poderia se dizer.

Saudou a motorista com uma formalidade respeitosa e liberou-a depois do diálogo em uma língua sonora e sem vogal.

Os visitantes se mantiveram calados, não trocavam mais impressão sobre as novidades. Estavam saturados de informação e o cérebro já não conseguia processar em tempo real. Precisavam reciclar reordenar os pensamentos para poder entender e, então, poderiam juntar as impressões e preencher as lacunas, caso houvesse alguma.

Atravessaram o portão e entraram na propriedade percorrendo o caminho de pedras brancas que os levou a entrada do palacete. O porteiro engalanado abriu a porta do veículo para a anfitriã, que com um agradecimento cortês, desceu e se postou embaixo do amplo telheiro esperando que os visitantes fossem liberados. Reunidos os três, adentraram ao edifício, cruzaram o hall e desembocaram em um imenso salão oval. Lá dentro, tomando quase todo seu diâmetro uma mesa redonda com capacidade para nada menos do que cinco mil pessoas estava com quase todos os lugares ocupados.

A mesa não era inteiriça, o tampo alcançava apenas noventa centímetros de largura, aproximadamente, o miolo era um grande vazio. Os atendentes serviam os comensais trazendo a comida em travessas, e eram deixados ali por um elevador que se levantava do centro deste vazio. Quando não estava em uso, o mesmo voltava à cozinha no andar debaixo e seu teto nivelava com o piso do centro da mesa, criando um espaço – um palco – para entretenimento ou discurso, dependendo da ocasião.

Aquela era uma ocasião solene. Foram anunciados por um arauto e levados a seus lugares. Elisa sentou-se entre os companheiros por exigência da anfitriã que pegou para si o lado esquerdo oferecendo o direito a João. Em ambas as direções era possível ver a face de todos os presentes e sua indumentária colorida e galardões a mostra. As mulheres enfeitadas de mil maneiras diferentes conforme o gosto e o talento de cada uma exibiam esmeraldas, rubis e diamantes enormes incrustados em anéis, correntes ou brincos.

O burburinho era geral. Todos dialogavam entre si, mas não se percebia tumulto, o que era de se esperar. A atenção se dividia em grupos de três indivíduos que se sentavam em um pedaço da mesa pintada com a mesma cor ou matiz. Os das laterais se voltavam para a personagem central, esperando que ela intermediasse e fosse o catalisador de uma conversação inteligente, alegre ou instrutiva.

De repente por cima do vozerio da sala um zunido se fez ouvir pelos visitantes. Olharam para todos os lados ansiosos em busca do motivo.

– João! Elisa sussurrou ao seu ouvido – o chão está se movendo – ali, olha!

O elevador surgiu inesperadamente, elevou-se ao máximo abrindo a porta com o estalido suave e rascante. O homem em trajes formais na cor vermelha amarelada, como o fogo ou como lava de vulcão, um chapéu enorme na forma da cromosfera solar estilizada, mas identificável por qualquer um que prestasse um pouco mais de atenção, se mostrou para a multidão. Aguardou enquanto todos se aquietavam e educadamente usando o idioma que o casal pudesse compartilhar, proferiu:

– Povo de Primicia – elevou a voz gesticulando para que todos prestassem atenção – Estamos hoje aqui reunidos pelo mesmo motivo que nossos pais se reuniram um dia nos primórdios de nossa civilização e, pela segunda vez desde aquela época, nosso modo de vida corre perigo de desaparecer por completo. Naquele tempo a coragem de nossos ancestrais conseguiu vencer um inimigo muito mais perigoso – a natureza – que por força de uma precipitação vindo do espaço sideral nos obrigou a procurar refugio no interior do planeta. Apesar de todas as desvantagens encontradas, nossos valorosos irmãos e irmãs desenvolveram uma maneira de nos manter seguros de qualquer perigo vindo de fora e isto nos permitiu sobreviver até os dias atuais.

Nunca os esquecemos e sempre prestamos homenagem a sua coragem. Mas hoje, nossa intenção ao lembrá-los não é prestarmos homenagem, mas buscarmos em seu exemplo força para vencer um inimigo que bate a nossa porta no intuito, como da primeira vez, de nos levar a extinção.

Diferente daquela época, nossos inimigos atuais não estão lá fora, mas já fizeram parte de nossa comunidade e hoje querem nos exterminar por puro egoísmo e desejo de poder.

Antes de iniciarmos a comezaina, quero agradecer a Doutora Elisa, que como todos sabem é nossa derradeira esperança de sobrevivência, por nos dar a honra de sua presença. Sabemos que foi trazida para cá através de subterfúgios pouco digno e lamentamos muito. Em meu nome e no nome de todo homem e mulher desta sociedade pedimos perdão por este gesto tão indigno, mas essencial para o futuro do planeta como um todo. .

Elisa levou um choque com essas últimas palavras virando-se para João que a olhava espantado.

Levantaram-se todos e aplaudiram sorrindo e gritando palavras lisonjeiras em direção ao trio. A anfitriã também em pé dava mostra de seu agradecimento tocando-a e apontando num gesto de triunfo.

Em seguida os pratos começaram a ser servidos e todos se acalmaram voltando sua atenção aos companheiros. Vez ou outra algum comensal olhava em sua direção e sorria abanando a mão.

– O que significa isso? – Perguntou, estava muito nervosa com a nova descoberta.

– Reconheço seu direito a uma explicação, imagino como deve estar apreensiva. Tudo será explicado… Por favor, tenha um pouco mais de paciência.

– O que ele quis dizer sobre o futuro do planeta? –João perguntou olhando por cima do ombro de Elisa.

– Por favor, tenha um pouco mais de paciência… Infelizmente temos que seguir o protocolo.

Como se viesse em seu socorro, atendentes depositaram três travessas abarrotadas de alimento a base de trigo, milho e fruto do mar ao alcance de suas mãos. Não conseguiram dar nome aos pratos, mas o sabor era algo extraordinário. Comeram com vontade enquanto ouviam musica interpretada por uma orquestra de cordas que saira do elevador e se sentaram em circulo no vazio do centro da mesa. Uma seleção de Tom Jobim a deixou extremamente comovida.

– Qual protocolo? – João voltou a perguntar após terminar a refeição.

– Nosso protocolo não permite tocar em qualquer assunto enquanto a sessão para os trabalhos não for aberta formalmente, mesmo estando cara-a-acara com um membro da casa que possa resolver nosso problema, não podemos nos adiantar – isso seria extremamente vergonhoso. Nesse aposento todas as questões relativas à vida do povo são resolvidas de uma maneira ou de outra. Nada fica para depois. O representante de cada família tem suas cores pintadas na mesa e pode pedir a palavra a qualquer momento, durante os trabalhos. As duas cadeiras sobressalentes normalmente são usadas por convidados que comparecem à sessão com algum pedido ou apenas como observador. Se não ficam vazias. A cadeira central é designada para a visita mais importante. Ou para o representante legal, caso a visita seja apenas um observador. Em ordem de importância segue a cadeira à direita e em seguida a da esquerda.

– Representante das famílias?

– Temos exatamente cinco mil duzentas e trinta famílias, o que representa quase doze milhões de pessoas.

– Mas… Nossa! Vocês são mais férteis que os chineses.

– Essas são as linhas familiares. Existem as subdivisões, os casamentos entre famílias… É bem mais complexos do que pode parecer no momento.

– Entendo…

– Está vendo essas cores – apontou para o tampo de polímero espelhado a sua frente cobrindo uma placa com o símbolo heráldico. No centro uma ave mítica, meio águia e meio leão, carmim em fundo azul, segurava uma flecha pintada com as cores verde, amarelo e magenta.

– Isto quer dizer – Elisa que ouvia, exclamou – a família original, passou a representar mais três grupos familiares.

– Não entendi… E a outra família? – João perguntou – Porque um dos cônjuges saiu de outra família, não é?

– A família que cede o feminino absorve a cor com menos pureza da outra família. O magenta, por exemplo, significa que o masculino que se uniu com o feminino da minha casa tem parentes em todas as famílias. Isto torna meu poder de decisão mais forte. Meu voto é usado para decidir um impasse… Voto de minerva como vocês diriam.

– Cidadãos de Primicia – ouviu-se a voz do homem em alto e bom som – Devemos retomar nossas obrigações em detrimento da alegria de nos vermos reunidos com nossos co-cidadãos ouvindo esta musica maravilhosa tocada com muito talento pelos nossos músicos excepcionais. Um problema de vida e morte espera para ser resolvido e segundo nossos analistas não temos muito mais tempo, considerando que o próximo cinqüentenário da revitalização está ha apenas dois anos de distância e muito já se perdeu com nossa inércia – girou sobre si mesmo encarando sérios todos os presentes – Deveríamos ter agido com mais presteza – murmurou abaixando a cabeça por um momento antes de levantá-la irritado.

– Como todos sabem, descobrimos há algum tempo que as vinte e cinco famílias que se ofereceram para morar na superfície com o único propósito de se manter saudável e ceder os componentes minerais necessários para nossa revitalização foi exterminada pelos nossos inimigos viscerais.

Ao longo de centenas de anos obtivemos sucesso em sobreviver porque sempre contamos com a revitalização periódica. Se não fosse assim, jamais conseguiríamos viver como vivemos e não teríamos conseguido criar o que criamos. Muitos dos que estão aqui hoje não conseguirão suportar mais cinqüenta anos sem a tão necessária revitalização, apesar disso trabalharemos incansavelmente para restaurar a ordem do caos que foi criado. Como aqueles que nos antecederam, seremos lembrados pelos nossos filhos, netos, bisnetos e por toda geração do porvir, para que nunca mais nos defrontemos com uma situação similar.

A partir de agora todo e qualquer planejamento deverá ser voltado para mantermos viva nossa civilização através dos jovens, daqueles que ainda não ultrapassaram o cinqüentenário e poderão se beneficiar com os novos doadores que deverão ser formados.

O homem parou de falar abruptamente. A ordem fora dada como um pedido – olhou demoradamente o rosto de cada homem e mulher presentes, levantou o braço direito com os punho fechado e se afastou, entrando no elevador que desapareceu de vista sem um ruído. Todos ficaram em silêncio.

O silencio continuou enquanto todos saiam do salão. Alguns cumprimentavam Elisa e João, outros apenas olhavam e sorriam. Meia hora depois os três estavam sozinhos na enorme mesa redonda.

– Por que eu? – Elisa perguntou quebrando o silêncio.

– Sei que está confusa e essa pergunta é pertinente, precisa ser respondida – a anfitriã pensou por algum tempo – Mas para respondê-la preciso que primeiro conheça nossa história. Venham comigo!

Levantou-se e saíram do salão subindo a escada que os levou a uma imensa biblioteca. Lá dentro pessoas deitadas em divãs, algumas solitárias, outras em grupo viajavam virtualmente por lugares inimagináveis.

Encontraram os divãs para três, disposto de maneira que os pés ficassem em triangulo, como a pétala de uma flor. Colocou o dispositivo – uma meia lua de prata com algumas pequenas luzes azuis piscando – na cabeça das visitas e pediu que se deitassem.

– Relaxem o máximo que puderem. Não se preocupem com nada, não serão afetados e nem poderão afetar o que quer que vejam. Poderemos conversar entre nós e podem fazer perguntas caso queiram.

A anfitriã fez o mesmo consigo mesma, deitou-se e pegou o pequeno monitor preso a lateral do divã, tocou a tela com os dedos finos e fechou os olhos.

Continua no próximo capítulo…

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