O Natal da parentada

– Bota mais uma tacinha de cidra pra dona Gertudes!

 – Tá na mão, depois passa a garrafa pro Genésio.

 – Faltam dois minutos, bora brindar, gente!

 – Não bate os copos antes, dá azar.

 – Nena e Zequinha, fiquem junto da gente que, daqui a pouco, Papai Noel chega.

 – Cadê o seu Honorato e a Wanda, precisa estar todo mundo na mesa.

 – Na cozinha, a Wanda está dando os últimos retoques no peru.

 – No peru de quem?

 – Cala a boca, Fonseca, toda vez que bebe é esse palavreado tosco.

 – Doralice, deixa o celular no jeito pra fazer a selfie!

 – Olha aí, 11 e 59!

 – 5, 4, 3, 2, 1 e…

 – Feliz Naaaatal!!!

Para o deslumbramento, não só das crianças, o forro da sala se abriu e dali surgiu Papai Noel, se equilibrando numa corda. Cotinha foi a primeira a perceber a “novidade” no morador da Lapônia e berrou:

– Que palhaçada é essa?

Amâncio, travestido de Bom Velhinho, resolvera colocar um pouco de ideologia na tradicional personagem: em vez de vermelho e branco veio trajado de verde e amarelo – inclusive na barba postiça.

Estabelecia-se a polarização e a consequente discórdia na ceia. 

– Tava demorando pra começar a baixaria política. 

 – Pelo amor de Deus, gente, isso é uma confraternização…

O Papai Noel patriota ignorou os reclamos. Abriu seu saco verde-amarelo e começou a distribuir os mimos para a garotada. Para as meninas; minibíblias; para os garotos, revólveres de brinquedo. Da ponta da mesa, Zezé protestou:

– Pra mim, o Papai Noel passou dos limites. 

Foi apoiado por um coro de parentes:

– Sai fora, velho fascista!

Em meio à turba, uma fatia do pavê preparado pela senhora do doutor Campos envolveu a cara de Amâncio. Ele caiu sentado para risos gerais. Muito rapidamente foi amparado pelas criancinhas, que choravam, assustadas, e pela ala à direita da árvore de Natal.

O líder dos que ficaram ao lado de Papai Noel era o sargento Venâncio, da PM, casado com a Geraldina, do armarinho. 

– Eu quero ver alguém encostar a mão nesse que é um símbolo da família e da pátria! – disse o militar.

Tio Renê, o mais gozador da parentada, aproveitou o momento em que Amâncio se erguia do piso, e passou a mão em sua bunda.

– Óóóóóóóó! –  horrorizaram-se os verde-amarelos. Dona Flor puxou o Hino Nacional. A vaia e os apupos tiveram início à esquerda da árvore natalina. Os nacionalistas respondiam à altura:

– Desrespeito!  

 – Comunismo!

 – Vão pra Cuba!

Garrafas de vinho, latas de cerveja, rabanadas e até uma cabeça de leitoa voavam pelo ambiente. Comadre Santina, politicamente neutra, aproveitou a deflagração para puxar os cabelos de tia Lurdes, que lhe tomara um noivo em 1987.

No apogeu do charivari, o sargento disparou o Taurus 38 para o alto. Todos se lançaram ao chão. O milico deu a palavra final:

– Tá todo mundo em cana! É intervenção militar, porra!

Foram necessários quatro camburões para conduzir todos os comensais à delegacia do bairro. A sorte foi que o Itagiba, amásio da Eneida, é advogado e entrou com o habeas-corpus. Ainda conseguiram passar o Ano Bom em casa. Só que cada um em seu quadrado.

(Publicado no Estadão)

 

Sobre Carlos Castelo 49 Artigos
Jornalista, poeta, humorista profissional diplomado. Um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo.

1 Comentário

  1. Muito bom!
    A sorte que minha família é toda anti verde amarelo, mas sempre aparece alguns convidados ou aqueles parentes distantes que estão nessa vibe. Mais um ano de desavença entre a parentada, rs!

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