O reencontro com o passado
João Carlos era o único filho de dona Maria de Lourdes, viúva de um humilde ferroviário. Desnecessário alongar-se para narrar as dificuldades enfrentadas pela pequena família. Dona Lu, como a chamavam, mulher simples e semianalfabeta, trabalhava como auxiliar de costureira. Fazendo barras de calças e pregando botões, conseguia juntar mais um dinheirinho à minguada pensão do falecido.
Dona Lu se orgulhava do filho adolescente, ótimo aluno na escola e dotado de admirável inteligência. O João era “mexido”, como se diz popularmente, esperto, sagaz, mas sofria preconceito em razão de sua origem humilde.
Certa vez, num sábado à tarde, a cidade agitava-se com o jogo de basquete entre o time local e o campeão paulista. A partida seria disputada na quadra do único clube local, um clube da elite.
Para seu desespero, o João Carlos não tinha um “puto” no bolso para comprar o ingresso. Como era moleque atrevido, voluntarioso, pulou o muro do clube para ver o jogo sem pagar. Deu azar logo de cara. Foi surpreendido por um segurança que o levou à presença do presidente da agremiação.
Do doutor Frederico Gomes do Amaral teve de ouvir palavras insultuosas, que o humilharam profundamente. O dito cujo era um rico cafeicultor. Arrogante, nariz empinado, com o orgulho lhe saindo até pelos poros, já se indispusera anteriormente com o João que teve a ousadia de ir à sua casa pedir-lhe a filha em namoro. Como resposta foi enxotado da casa dela aos gritos de que não passava de um pobretão, pé de chinelo.
Isso posto, doutor Frederico ordenou que retirassem o garoto do clube, na frente de todo mundo e pelo portão dos fundos. À essa cena abominável João Carlos chorou como nunca o fizera antes. Tudo isso jamais se apagou de sua memória.
O destino, porém, é maroto, e sabe dar suas voltas. Aquela cena grosseira no clube fora presenciada pelo senhor Scatimburgo, homem respeitado e culto. Penalizado e ao mesmo tempo indignado com tudo aquilo, resolveu ajudar o João, de alguma forma.
Na semana seguinte, Scatimburgo procurou a mãe do rapaz e se comprometeu a custear-lhe os estudos até a conclusão do curso universitário.
Alcançada a maioridade, João mudou-se para a Capital com o propósito de trabalhar e estudar, e junto foi a dona Lu.
Os anos voaram. Agora o cenário era outro. João tornou-se o doutor João Carlos, advogado respeitabilíssimo. Homem de reconhecida competência e honorabilidade, acabou nomeado assessor do governador do Estado. Daí elegeu-se deputado estadual.
Como deputado estadual conseguiu aprovar uma emenda parlamentar, destinando uma verba para a construção de um grande ginásio poliesportivo naquele clube de sua cidade natal. O compromisso era de que o clube também cedesse as dependências do ginásio para as crianças e adolescentes pobres praticarem esportes sob a supervisão da Prefeitura.
A cerimônia de inauguração foi realizada no próprio ginásio, com a presença de autoridades locais e de um grande público. E como não poderia deixar de ser, João Carlos foi homenageado e ovacionado pela população presente. No meio da multidão, meio que escondido e muito constrangido, estava o doutor Frederico e sua filha, solteira durante todos esses anos.
Ao fazer uso da palavra, João Carlos, tomado pela emoção iniciou com um desabafo: “Hoje, finalmente, tenho a alma leve, pois dela tirei o peso da humilhação. Da última vez que aqui estive, fui retirado pela porta dos fundos. Depois de muitos anos entro e saio pela porta da frente”. E, com lágrimas nos olhos, encerrou sua fala: “Nada mais tenho a dizer ou fazer nesta cidade”. Abraçado com dona Lu, retirou-se, saindo pelo portão principal.
O doutor João Carlos nunca mais regressou àquela cidade…
Por Gilberto Silos
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