O roubo

 

O roubo

Por Milton T. Mendonça

O carnaval aconteceria um mês antes, em fevereiro, isso queria dizer que o país começaria trabalhar mais cedo também. Imaginei a raiva dos políticos com esse transtorno, teriam que inventar mais mentiras. Esse ano prometia ser diferente, quem sabe a roda da fortuna não conseguiria energia suficiente, neste tempo a mais, para alcançar o escaninho onde se esconde minha vida. Era essa minha esperança naquela segunda-feira, semanas antes, quando o telefone tocou e uma vós aflita de mulher falou do outro lado:

–         É o seu Olegário que está falando? Benjamim Olegário?!

–         Sim, mas pode me chamar de Oleg – respondi – espantado com a urgência impressa na voz de soprano.

–         Disseram-me que o senhor é artista plástico, preciso dos seus serviços.

–         pois não, do que se trata? – perguntei intrigado.

–         Quero que o senhor reproduza uma tela. Mas tem que ficar pronta  no máximo dois dias antes do carnaval.

–         Que tipo de tela?

–         É o  retrato de meu marido. Ela   foi roubada e não quero que ele saiba.

–         A senhora tem uma foto?

–         Tenho, mas não é muito boa.

–         Pode trazer para mim?

–         O senhor pode vir buscar? Prefiro que não me vejam entrando no seu ateliê.

–         Está bem, qual é o endereço?

Ela dissera o endereço na parte nobre da cidade e combinamos que estaria no dia seguinte, antes das dez, em sua casa.

A mansão, no alto da colina, lembrava aqueles filmes noir de detetive,  da hollyood dos anos quarenta, fiquei espantado com o luxo.  Toquei o interfone e me apresentei. O portão de ferro se abriu como num passe de mágica. Arrastei meu velho chevrolet até a porta da casa  e me dirigi ao pórtico, onde uma senhora me esperava.

Fui deixado sozinho no hall. Notei que no grande salão a minha frente, com seus três ambientes decorados com requinte, uma parede nua  saltava aos olhos. Era alí, com certeza, que o quadro se encontrava  antes do roubo. Pela marca deixada, podia ver que era grande, provavelmente três por quatro metros. Esperei a dona da casa aparecer, aproveitando para  apreciar as obras de arte ao redor, impressionado com os artistas alí representados. Uma pergunta surgiu natural: “porquê somente o retrato fora roubado?“

Observava um busto de Dalou, esculpido magnificamente por Rodin  e ainda as voltas com o mistério,  quando ouvi passos e uma mão tocou meu ombro levemente. Voltei-me e uma linda mulher com, no máximo, trinta e cinco anos, me olhava com os mais belos olhos verdes que jamais vira em toda minha vida.

–         Bom dia, seu Oleg! – Cumprimentou-me estendendo as mãos que apertei com cuidado.

–         Obrigada por ter vindo tão prontamente, estou passando momentos de grande angustia com o roubo do retrato.

–         Suponho que o quadro estava aqui – apontei a parede nua – quem o pintou?

Sem esperar pela resposta, retirei a trena da bolsa de couro que levara comigo e medi o espaço deixado pela tela.

–         Um mestre francês, infelizmente já falecido. Não poderia recorrer a ele mesmo que não estivesse tão longe. Pode reproduzi-lo? – estendeu a mão e entregou-me a foto dez por quinze centímetros e o compact disc – Caso o tamanho não seja conveniente, revele outra, todo gasto é por minha conta – falara tentando um sorriso.

No primeiro plano o casal sorria em frente ao quadro de um jovem de pouco mais de vinte anos. Suas cores e formas bem acabadas remetiam a um profissional consciente e maduro, com grande habilidade. Seu estilo era interessante, se percebia algumas inovações e um profundo conhecimento de anatomia.

–         Foi retratado na sua primeira viajem à Europa, quando ainda tentava ganhar seu primeiro milhão, é uma de suas peças mais valiosas, junta o afetivo com o monetário – sei que o senhor me entende – não quero decepcioná-lo.

–         Posso reproduzi-lo, é claro, mas não seria mais barato denunciar a polícia e esperar que eles o recuperem? Afinal todos estamos sujeitos a essas fatalidades, principalmente em um país sem lei como o Brasil.

Desviara os olhos e torcera as mãos constrangida ao ouvir essas palavras, voltando-se para janela, e, de costas para mim, depois de algum tempo absorta,  falara com um suspiro triste e profundo:

–         Infelizmente nada é tão simples como deveria, estou com as mãos atadas. O senhor pode me ajudar ou não?

–         Claro, estou aqui para isso – falei acertivo.

Combinamos o preço e parti  com a primeira metade do pagamento no bolso, em busca do material necessário à empreitada.

O trabalho intenso me fez esquecer das dúvidas  a respeito do roubo, que tivera naquele dia em sua casa. Quando ela aparecera intempestiva, no meu ateliê alguns dias mais tarde,  seus  olhos tinham marcas de choro recente e  olheiras profundas de noites sem dormir. O cabelo opaco, a pele seca e maltratada demolira a imagem que tinha na memória.  Meu senso estético se ressentiu me fazendo contrair a boca a deixando na defensiva.

–          Desculpe ter entrado em sua casa dessa maneira, mas estou desesperada,  preciso de sua ajuda! – exclamou se sentando na poltrona do pequeno living, soluçando alto.

–         Calma! – falei baixinho em seu ouvido deitando sua cabeça em meu ombro.

–         Ele quer minha desgraça, não sei mais o que fazer.

–         Quem? – perguntei curioso.

–         O ladrão!

–         Encontraram o ladrão? Avisou a policia então?

–         Não! Não posso avisar a polícia…ele quer minha ruína.

Esperei que se acalmasse e pedi explicação sobre os fatos. Relutou por algum tempo, mas com medo de ser deixada sozinha revelou o mistério:

Conhecera o homem numa visita que fizera ao masp para ver uma mostra itinerante e  fugir da solidão, o marido viajava constantemente a trabalho. O amor pela arte os uniu e quando tentara desistir ele não deixara. Amava-a dissera, a princípio, depois a torturara pedindo dinheiro. Por fim lhe roubara a tela e prometia se vingar contando ao marido.

–  O quadro não prova nada! – exclamei tentando tranquilizá-la.

–          Eu sei! Ele quer criar uma dupla traição. Sabe que isso  magoará meu marido tão profundamente que nunca serei perdoada. Se o quadro estiver na parede quando ele chegar, tudo parecerá uma armação. Por isso não posso avisar a polícia, o roubo não pode ser divulgado.

Sacudi a cabeça.

–         Isto não dará certo, se ele resolver mostrar a tela ao seu marido sua farsa será descoberta – o quê ele quer exatamente?

–         Quer dinheiro… quer que continuemos juntos e que eu o sustente. É um canalha!

–         Marque um encontro, quero conhecê-lo.

–         Mas ele não irá, não se apresentará a outra pessoa.

–         Não! Marque um encontro em lugar publico, no shopping, por exemplo, e eu estarei de longe. Depois o seguirei e a partir daí pensaremos numa solução.

Olhou-me espantada antes de perguntar:

–         Você faria isso por mim? – as lagrimas rolaram pelo seu  rosto de criança.

–         Não chore – falei comovido – você me pediu ajuda, não posso deixá-la sozinha numa hora dessas. Por favor, não chore!

–         Está bem! – exclamou limpando o rosto e assoando o nariz no lenço que lhe entreguei – não adianta nada mesmo. Vou marcar o encontro.

Pegou o telefone na bolsa e apertou a tecla decidida. Conversou por um momento – aos solavancos – desligando em seguida.

–         Daqui à uma hora – falou firme – no shopping da Dutra.

Cheguei antes dela e me posicionei a uma distância razoável e esperei que ele se aproximasse. Quando percebi sua presença caminhei calmamente na direção dos dois com o celular à mão e quando passei por ele, no momento que a cumprimentava, tirei uma foto. Precisava dela caso tudo desse errado e a policia fosse avisada.

Distanciei-me alguns passos e parei me encostando à amurada despreocupado. O movimento era grande, as pessoas, muitas delas mulheres, andavam de lá para cá com as mãos repletas de compras. Esperei, olhando disfarçadamente para onde estavam. Ela com a cabeça baixa assentia passivamente, enquanto ele, falava gesticulando  irritado.

Despediram-se. O homem caminhou em sentido contrário de onde eu estava. Andei depressa em sua direção e ao passar por ela, pisquei-lhe sorrindo confiante. Segui-o a uma distância segura para não ser visto através das vitrines e espelhos espalhados por todo o prédio. Saímos no estacionamento.

Não olhara para traz nenhuma vez, tinha a tranqüilidade de um profissional. Observei com mais cuidado sua pessoa e não pude distinguir nenhuma qualidade física que o fazia ter sucesso com o sexo oposto – sentira uma leve decepção. Provavelmente é um bom papo – pensei – mulheres gostam disso – sorri comigo mesmo.

Segui-o pelas ruas da cidade, com meu velho chevrolet,  até a periferia. Parou em frente a única  casa com os muros altos do bairro – um bunker – abrindo o portão automaticamente,  entrando em seguida.  Antes que se fechasse, porém, passei em frente devagar e pude ver o jardim planejado  cuidadosamente com uma pequena casa bem desenhada ao fundo.

Descera do carro sem se preocupar com o cão fila que o esperava e, quase caiu ao ser atingido no peito pelas suas patas. Definitivamente era alí o seu esconderijo.

Voltei ao ateliê na esperança de encontrar Mathilda me esperando, encontrei-a andando de um lado para o outro nervosa. Confidenciei-lhe o que descobrira e propus um plano: invadiria a casa do marginal e roubaria o quadro de volta. Como? Esse era o problema.

A primeira coisa que deveria fazer, era saber se morava ou não sozinho. Tentei descobrir se tinha telefone residencial, não tinha. Fiquei de tocaia alguns dias, a única pessoa estranha a aparecer no local foi a faxineira. Não foi difícil puxar conversa e tirar da pobre senhora toda informação que precisava.

Naquela altura eu estava com muita raiva do meliante e sentia gana de espancá-lo. Não desculpava o fato de Mathilda ter caído na lábia do gatuno, mas explorar mulheres era algo covarde demais. Minha intolerância aflorou selvagem, saindo do seu esconderijo secreto, circundando minha pele com descargas elétricas intermitente que me fazia espumar.

Resolvera que devia ser curto e grosso. Apertaria a campanhia e quando ele aparecesse enfiaria o revólver em sua boca e tomaria o quadro, prometendo uma morte dolorosa caso surgisse em nosso horizonte novamente. E foi o que fiz. Levara um quilo de carne para o cão e quando abriu o portão enfiei com toda a força o trinta e oito cano curto em sua boca. Senti alguns dentes se partirem com a violência. Quando saí de lá com a tela na mão, ele estava caído, chorando, atras da maquina de lavar roupas.

Levei diretamente à casa de Mathilda, queria terminar com o sofrimento da criatura mais delicada que encontrara em toda minha vida. Assim que me viu com o quadro quase desfalecera, expliquei tudo que acontecera e conforme repetia, a seu pedido, algum pormenor, recebia um beijo de gratidão no rosto. Recoloquei na parede a peça roubada enquanto brindávamos seu retorno com champagne.

Despedi-me depois da terceira garrafa e quando cheguei em casa  o quadro inacabado no cavalete era a única prova da aventura, estava certo que não tornaria a vê-la. Retirei-o e o encostei na parede esperando usá-lo em outra oportunidade. Fui dormir.

Na manhã seguinte, enquanto ingeria o primeiro alimento do dia a campanhia tocou me tirando o último resquício de sono. Parada na soleira, Mathilda esperava que a porta fosse aberta. Entrou, passando por mim como um furacão, parando alguns passos depois,  se virando sorridente. Abriu a bolsa e retirou um cheque vultoso me entregando. Peguei no susto, surpreendido com sua presença àquela hora tão cedo.

–         Falei com meu marido e ele autorizou o pagamento pela recuperação do quadro. Espero que a quantia seja satisfatória.

–         Mais que satisfatória – respondi – posso viver confortavelmente  por mais de um ano com esse dinheiro.

–         Você mereceu cada centavo,  meu marido está muito agradecido. Ele quer ver suas obras, apresentá-lo a seus amigos colecionadores e, quem sabe, fazer um novo retrato.

Fiquei em choque olhando-a, perscrutando seu rosto em busca de um sinal que tudo não passava de brincadeira. Ela se aproximou, colocou a mão delicada em meu queijo e o empurrou, fechando minha boca.

–         Venha – sussurrou próximo a meus lábios – vai receber o meu pagamento – pegou-me pelas mãos e me puxou em direção ao quarto.

Antes de beijá-la me lembrei do formidável ano que estava se iniciando. Esse realmente iria ser diferente, afinal.

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