Opúsculo Sobre a (Minha) Morte
Luiz Carlos Cichetto
Trilhas Sonoras:
David Bowie – My Death
Psychotic Eyes – Life
King Crimson – Epitaph
Sou um escritor fracassado, mas não se preocupe, querido leitor ou leitora, que não farei outra daquelas histórias de escritores mal sucedidos, que nunca são editados, que não comem ninguém, nunca ganham prêmios literários e que, por algum golpe de sorte, pacto demoníaco ou qualquer coisa fortuita, acabam se dando bem, e acabam com seu livro virando best-seller e se mudam de galpão sujo e cheio de ratos, para uma cobertura cheia de putas, no alto de um prédio de New York ou São Paulo, quando não para uma casa na praia.
Escritores adoram falar de escritores, principalmente os fodidos, o cinema adora contar histórias de escritores, especialmente dos inexistentes. Mesmo que sejam maus escritores, que não saibam ser escritores ou que sequer saibam escrever. Eu mesmo já falei mal de escritores, brinquei de ser rebelde e quis me isolar no alto de uma montanha, ser um escritor recluso, mas de preferência famoso, ganhar uma grana preta e comer mulheres maravilhosas, em noites de autógrafos e em camas desarrumadas. Dão boas cenas de livros e filmes esses cenários.
Ah, sim, esqueci-me de falar das histórias de escritores que não gostam de escrever, mas gostam de beber, apostar em corridas e dizem que não são escritores, apenas para parecerem… Escritores. Sem contar a de outros, que morreram sem publicar, mas que ficaram famosos depois de mortos aí então foram aclamados como gênios póstumos e tiveram suas obras em edições esgotadas. Há tantas que daria para encher um livro e o seu saco com lamúrias e coisas mirabolantes, e depois, quem sabe, meus bolsos de dinheiro, se é que alguém ainda consegue isso.
Mas como eu dizia, sou um escritor fracassado, mas não vou me queixar, nem contar minha inglória história sobre como me tornei escritor, até por que, somente escritores ricos contam essas. Aos outros, como eu, apenas podem contar lorotas em mesas de botecos, quando tem botecos aonde possa ir, ou aos netos, quando os tem. Portanto, não lhes contarei a história da minha vida, mas da minha morte, já que estou completa e totalmente morto.
Sei o que dirão, que isso também não é algo inédito, que muitos já narraram sobre suas próprias mortes, escreveram como se estivessem mortos, suas existências pós-existência. Foram muitos, e sempre renderam belas narrativas. De todas, o grande mestre Machado com seu Brás Cubas, é a mais fabulosa de todas. E eu, que jamais ficaria a altura do dedinho mindinho dos pé do fundador da Academia Brasileira de Letras, jamais me atreveria a fazer uma narrativa semelhante, e sequer teria tantos fatos póstumos a relatar, quanto o impoluto Brás Cubas.
Então pergunto ao caríssimo leitor, que não é um verme que tomou minhas carnes ainda vivo, mas que me roeria rapidamente dentro do caixão, depois de uma parada cardíaca ou cerebral, que espécie de história espera que eu lhe conte depois de morto? Que espécie de conto eu escreveria depois de falecido? Que poema eu versaria depois de estar enfiado numa tumba escura? E principalmente pergunto ao amado e querido ou amada e querida – que ainda acredito que seres humanos são machos e fêmeas – se de fato estaria com disposição para ler as histórias de um morto.
Que maldita sina ou mórbido desejo assola a mente humana em deixar morrer para depois consagrar em estátuas? Que torpe sorte é a dessa raça estúpida que prefere o que está morto e podre? Sequer urubus comem carnes pobres, é dito, mas aos humanos, que não comem suas próprias carnes dos seus próprios mortos, mas que devoram as almas dos vivos, cabe o infortúnio da desculpa, no lugar da torpeza da culpa. Cabe-lhes a maldita perfídia de amar aos mortos e odiar aos vivos. Sobram-lhes lutos pesarosos e faltam-lhes respeito ao que sonham.
Então lhes disse que estou morto, mas nenhuma prova material existe de que eu esteja de fato morto. Nenhum médico comprovará que meu coração tenha parado de bater, nenhum cirurgião que comprove que meu cérebro cessou, nenhum coveiro jamais testemunhará que me sepultou a sete palmos, e nem mesmo uma testemunha irá depor sobre o assassinato de que fui vítima. Não haverá provas de latrocínio, e sequer nenhum frasco ou corda, e nem mesmo uma carta que comprove meu suicídio. Portanto, nenhum tribunal poderá condenar a ninguém sobre a minha morte, nenhum presídio receberá o criminoso e nenhum padre dará a absolvição eterna.
É claro que eu gostaria de saber o que falam sobre mim, ao redor do meu caixão, e receber as lágrimas no rosto morto, das mulheres a quem tive nos braços, das que gostaria de ter tido, e das que gostaria que eu as tivesse; é claro que eu gostaria de ouvir as confissões intimas que se faz em velórios, sobre o morto, e que jamais fariam se vivos; é lógico que me agradaria saber sobre quantos ali, naquela sala com horroroso cheio de velas e flores tão mortas quanto eu, leram o que eu escrevia quando minhas mãos ainda não estavam cruzadas sobre o peito, mas deslizavam segurando uma caneta num papel. Eu me sentiria vingado pelo remorsos daqueles que me traíram, pelas lágrimas dos que me roubaram a alegria, e especialmente, me sentiria um vitorioso pela ira infame daqueles que não conseguiram me matar.
Eu comecei dizendo, ou melhor escrevendo, já que palavras escritas comunicam, mas não dizem, que eu não faria das lamúrias minha crônica, mas como cumprir minha promessa, quando qualquer escritor que ao menos se imagine um, vive de tal artimanha, mesmo que não seja honesto com isso. Há histórias de amor sem perdas? Histórias de terror sem dores? Ou mesmo histórias cômicas sem alguém sendo prejudicado? Pensem bem, caros e caras, que concluirão que não existem histórias sem lágrimas. Ou melhor definindo, nada existe que não sejam de fato perdas.
Viver é perder. Algum filósofo já deve ter pensado e dito isso. Se não disse, digo agora. E se disse, que me perdoe o involuntário plágio. E se viver é perder, e sempre é, o que mais se pode perder na vida, já que ela própria está perdida? É por isso que a humanidade tanto precisa de religião, eu creio: para que se crie a ilusão de que haverá o ganho na morte. Para eles, o ganho está na morte, não na vida. E tudo isso é o que torna absurda a colocação “perdeu a vida”, quando se noticia um falecimento.
Sou um filósofo! E que não tenha o leitor ou leitora de olhar maroto e preconceito escroto, pedir minha tese acadêmica ou meu diploma de doutor. Sou daqueles que solta frases de impacto encostados num balcão de bar sob urras de bêbados, que depois esquecem, da frase e do autor, assim que passa a bebedeira. Então, sendo um filósofo de boteco, me reservo o direito de não citar escolas de filosofia, nem os grandes pensadores da história. A filosofia é a arte do empirismo, do lirismo e do anti-estoicismo. Tenho o direito de considerar a garrafa meio cheia ou meio vazia como instrumentos filosóficos válidos. Quando meio cheia me embriaga, e quando meio vazia me estraga. Troco Platão, Nietzsche, e todos os grandes mestres pelos bêbados que contam piadas filosóficas sobre traídos e traidores, cornos e mansos, e depois entornam seus copos meio cheios e meio vazios goela abaixo para que a filosofia não os atormente tanto. E eles sabem, melhor que Epicuro sobre ataraxia, conhecem melhor que Schoppenhauer sobre o que é dor, calculam melhor que Pitágoras o triangulo equilátero que compreende seu polígono de excêntricos ângulos. E eles sabem melhor sobre o que é a morte, diariamente ao olhar no espelho.
Minha mãe teve dois abortos, um antes de mim e outro depois, o que poderia me fazer pensar que sou mesmo um espermatozoide de sorte. Ou fruto de um esquecimento ou da falta de oportunidade. Penso muito nos meus irmãos, que foram despejados numa latrina ou jogado numa caixa de restos hospitalares, pouco importa seu destino. Penso muito naqueles que não tiverem a oportunidade de serem espancados quando criança, de não terem sofrido violências na escola, de não poderem escrever sobre isso, e concluo que ao falar sobre isso, escrevo por eles suas memórias póstumas.
Eu poderia ter sido muitas coisas. Poderia ter sido engenheiro, advogado, médico, assassino, traficante, cafetão. Poderia ter salvado e morto a muita gente; poderia ter sido rico e morado em casas luxuosas, com empregadas gostosas que eu teria comido nos quartos dos fundos; poderia não ter casado, não ter criado filhos. De fato eu poderia ter feito e sido tanta coisa que não fui, em detrimento do que fiz e fui, que tem horas que teria sido melhor não ter sido nada mesmo, pois assim não haveria o arrependimento e a duvida.
Escritores são seres frustrados, e ainda bem. Mas nem todos os frustrados são escritores. Alguns se tornam assassinos, o que de fato não tem lá grande diferença, já que esses são definidos por tirarem a vida alheia, e colocam a dor em seu lugar. Escritores também são assim, tiram vidas que não lhes pertencem colocando dor no lugar.
Qualquer escritor mal sucedido nutre uma ideia absurda, em determinados momentos, de que compõe sua obra de qualquer forma, mesmo que não receba dinheiro, glória ou sucesso durante sua existência, para a posteridade, ou seja, para que seja lida e entendida depois de sua morte. Alimentam esses tolos, possivelmente movidos consciente ou inconscientemente por dogmas religiosos, de que assistirão depois de mortos, seus nomes sendo ditos em programas de televisão, seus textos sendo lidos em saraus ao anoitecer por leitores saudosos e lacrimosos. Acreditam, mesmo sem crer em espíritos, que estarão pairando no ar, ao redor do mundo, ouvindo e vendo elogios e loas à sua obra, que não teve durante sua vida, o que ele acredita como respeito e merecimento. E a esses eu digo: caso tenham oportunidade, ateiem fogo a tudo o que escreveram, pois além de tal cena jamais acontecer – mesmo que acredite em Céu ou Inferno garanto que existirão coisas mais importantes do que passar um documentário a respeito dos acontecimentos literários no mundo terreno -, aqueles que ficaram e não lhe deram a devida importância, não merecem. E mesmo que pensem nisso como um ato de vingança ou justiça.
Ademais, àqueles que, dotados de um falso senso de humildade, pensam em deixar a descendentes um possível e futuro ganho que eles próprios não tiveram, pensem que nada esses contribuíram, já que a criação de um Homem é puramente individual, e nasce e cresce como fruto egoísta de uma mente. Um fruto que deve apodrecer junto com quem o plantou e colheu. O criador nada deve senão a ele próprio, e o produto da mente de um Homem é de sua exclusiva propriedade, e deve desaparecer junto com ela. A criação não pode ser deixada como herança, para usufruto daqueles que nada tiveram com ela, e que em muitas vezes, ao contrário, fizeram por ignorar, privando o criador, até mesmo do mais ínfimo respeito. A obra de um criador é uma dádiva dele para si próprio, e assim deve ser mantida e tratada. Nenhum ente invisível lhe deu qualquer dom, isso simplesmente não existe. A criação é fruto de seu acumulo de conhecimento, trabalho e vontade, sendo portanto um bem inalienável e intransferível.
As religiões abraâmicas acreditam na ressurreição, as orientais na reencarnação, já a neuropsicologia no chamado “eternal oblivion”, ou seja, o esquecimento eterno, que é de fato da qual compartilho, e creio ser a mais honesta e a única que não carrega a vaidade no bojo. A ressurreição, quando o morto simplesmente se levanta e sai andando depois de algum tempo, quanto à reencarnação, quando o espírito passa a usar outro, são repletas de vaidade por todos os cantos, partindo do pressuposto que somos tão importantes para o Universo, que ele dará um jeito de nos recolocar de volta, de um jeito ou de outro. É dentro dessas duas formas que a maior parte dos escritores fracassados e ou vaidosos, se enquadram: acreditam que sua obra é tão importante que eles sobreviverão dentro delas. Muitos se imaginam ouvindo comentários de amigos, de editores, chegam ao cumulo de imaginar matérias de jornal ou revista, ou são reverenciados post-mortem. Sinto muito, queridos colegas, mas não terão nenhum tipo de consciência disso, se é que acontecerá. Portanto, façam o que puderem para escutar e ler sobre o quão boa ou ruim é sua obra agora mesmo, ou simplesmente morram sabendo apenas que fizeram o que queriam ter feito. A morte não atende a desejos de vaidade.
Além do papel de baliza social e moral, tem outro lado das religiões, precisamente com relação à morte, e que não consta em escrituras. Quase todas as religiões do mundo tratam do pós-morte de forma a criar nas mentes de seus seguidores a ideia de que tudo será melhor. Seja como reencarnação, ressuscitação, ou simplesmente fazendo acreditar que ali está uma “existência”, se tanto melhor que a “atual”, tentam provar que há algo depois. E o que há de importante nisso? A humanidade não se conforma em que um dia tudo se acabará, que todos os seus feitos simplesmente ficarão para usufruto de outros, que suas memórias serão apagadas rapidamente daqueles que amam, que sua aparência, sua consciência e sua ciência, deixarão de existir. E isso, a seres tão vaidosos quanto somos é terrível. Não aguentamos pensar em tal estado de ausência total, do nada absoluto, e, portanto é de extrema utilidade a ideia de pós-morte, mesmo que não seja atrelada a coisas boas como anjos, deuses e harpas. Mesmo que seja num lugar cheirando a enxofre, com um diabo espetando a bunda, ainda assim é um conforto, afinal é melhor o Inferno do que nada. E então as pessoas seguem, mesmo que no fundo sintam que nada disso é real, acreditando, usando essas ideias como muleta contra a própria mediocridade, para acreditar que suas vidas são demais importantes para simplesmente deixarem de ser. E são, pois é exatamente a certeza de que um dia deixaremos de existir, o que deveria fazer com que vivêssemos muito mais intensamente do que vivemos, e tratar não de acreditarmos na eternidade no além tumulo, mas no exato instante; e por fim, tratarmos da própria existência não como prisão, mas como liberdade.
“Porque o salário do pecado é a morte”, diz uma passagem da Bíblia cristã, onde há várias referências ao ser humano ser originalmente portador do que chamam de “Pecado Original”. Católicos, inclusive, batizam recém-nascidos com o intuito de livrá-los. Toda a concepção do cristianismo é baseada na crença de vida humana como pecado e, portanto, passível de condenação á morte. Um entendimento claro dessas escrituras é que: “debaixo da lei de Deus, todos nós estamos condenados a morrer, por causa do pecado.” Portanto, nascer é uma sentença de morte. Além disso, sabendo-se que o que chamam de pecado original é a desobediência gerada pelo desejo e consagrada pelo sexo, que além de prazer gera a própria vida, que criada de um pecado é punido com a morte. Uma espécie de reação em cadeia nessa lógica teísta que reduz os seres humanos, meros seres de barro soprado e costelas retiradas sem cirurgia, a simples espectadores das brincadeiras de uma deidade vaidosa e cruel, que como bom ditador, despreza a vida de qualquer outro ser, e o condena por um crime do qual sequer tem ciência. Em suma, para a fé cristã, a vida é desprezável e desprezível.
Baseado ainda nesses pontos penso que as religiões que atuam dentro desses dogmas não deveriam condenar o aborto, já que ele seria exatamente a execução do projeto divino, ou seja a própria mãe que por ter feito sexo gerou o fruto de um pecado, ao matar esse fruto estaria simplesmente seguindo a regra ao pé da letra. Acontece que para essas igrejas, o salário do pecado não é a morte, e nem pode ser chamado de salário, mas de lucros e dividendos.
Todas as religiões calcadas no cristianismo existem apenas em função da morte. O estigma de Cristo, sua martirização e morte por crucificação. Todos os eventos desse ser, alegado filho de Deus não tem tanta importância quanto o exemplo de sua morte banhada em dor e sangue, para depois ser considerado santo. Pouco valor é dado a seus feitos em vida, mesmo que tenha ressuscitado mortos e transformado água em vinho, coisas que já seriam impossíveis a qualquer ser humano. O que tem mesmo importância é sua morte e sofrimento. E se para o tal Filho, pouco de sua existência tem algum valor, imaginem a seus fiéis seguidores, que mesmo que realizem feitos extraordinários, de nada valerão. A eles, o único objetivo da vida é a morte. A morte lhes serve a propósitos, da mesma forma que a estados totalitários governados por tiranos com seu exacerbado culto à personalidade. Com ossos de defuntos tanto as igrejas quanto as ditaduras erguem seus templos e palácios, cujas paredes são feitas de mentiras e pintadas com as cores do medo.
Quando meu avô morreu, no início da década de 1970, seu corpo foi velado na sala da casa, em principio sobre a mesa da cozinha. O costume até alguns anos, era que os velórios fossem realizados dentro das próprias residências. A ideia era que aquilo fosse uma espécie de ultima reunião de família e amigos, demonstrando o apreço desses para com o morto, que ia para o cemitério acompanhado de um enorme séquito, mesmo que não fosse uma pessoa famosa ou de posses. As viúvas ou viúvos e os mais próximos se vestiam de roupas pretas e se abstinham de divertimentos e conversas alegres durante muito tempo, em sinal de luto, ou seja, tristeza profunda em função da perda de alguém querido. Com o tempo, todas essas práticas e costumes foram sendo abolidas, junto com o próprio sentimento de perda e a própria tristeza passou a ser mais comedida. A morte passou a ser encarada apenas como um acontecimento social, com direito bebidas e comidas, e no máximo a imagem de uma fita preta no perfil de uma rede social. A banalidade da morte, seja de que forma for, transformou-a num ato tão normal quanto ir ao banheiro dar uma cagada, portanto, o que eu posso esperar quando me declaro morto, e nem sequer sou usuário de nenhuma rede social?
Antes se permanecia em luto, se encomendava missas e se chorava de tristeza por muitos e muitos anos. Fazia-se questão de recordar os feitos e malfeitos dos queridos, recordando suas existências durante várias gerações. O culto aos antepassadios, particularmente presentes em cultos de origem oriental ou indígena era reconhecido como respeito e homenagem. Entretanto, particularmente desde o final do século passado, o tempo foi se encolhendo, e as lembranças e sinais de respeito também. Nada dura mais que uma semana. A morte e sua tristeza duram apenas até a próxima festa.
Aprendíamos a temer a morte, mesmo também sendo ensinados que dela adviriam uma recompensa celestial, e esse temor nos fazia mais forte, nos apegar mais a vida, apesar da tal recompensa. Depois aprendemos que não devíamos temer a morte, mas nos apegar somente à vida e suas recompensas, especialmente suas facilidades e alegrias, sem pensar que um dia tudo chegaria ao fim. E isso tornou nossas existências miseráveis e vagas. Sem o medo da morte, passamos a não dar valor á vida.
Muitos escritores mal sucedidos em termos financeiros também acreditam serem mártires, que sua obra tem finalidades outras, que almejam o bem comum. A pior coisa de um ser humano é o auto sacrifício. A generosidade e o altruísmo, coisas tidas como representantes da bondade humana são as maiores fraudes criadas por ideologias e teologias com o intuito de lhes alimentar o enorme estômago e engordar-lhes as já volumosas panças. O pior exemplo é o do Cristianismo e de outras seitas similares que representam como figura humana o filho de uma deidade, impingindo a ideia de que a martirização deste deve servir de exemplo a toda a humanidade, que o sofrimento, a injúria e o sangue possam representar a expiação dos pecados de todos. Então, acabam esses escritores sendo no mínimo autoindulgentes, e enganando a si próprios, acreditando seu pagamento seja o bem comum. Enganado, resta apenas a tal espécie de escritor, a ilusão de que seu martírio irá livrar a humanidade, ou ao menos parte dela, de um pecado que jamais existiu. E ainda pedirá perdão em nome da multidão que lhe vira as costas.
Eu disse há parágrafos atrás que estou morto, mas é claro, que o leitor ou leitora acreditou que estava diante de uma metáfora sobre sentimentos de ausência, de tristeza extrema, de falta de perspectivas, de desejo de isolamento. E não deixa de estar certo, mas apenas ate certo ponto, pois não se trata aqui de um conto de literatura fantástica, ou sequer um dos inúmeros poemas que eu mesmo escrevi sobre isso, mas sobre algo muito real, mas nem por isso físico. Meu coração não parou, meu cérebro não cessou suas atividades, mas nem por isso posso considerar-me vivo, já que não existe motivo, razão ou circunstância que me classifique em tal condição.
Excetuando-se os padrões biológicos citados, sobrariam os conceitos religiosos sobre morte e vida, que de fato os definem sem qualquer espécie de lógica, por se basearem em fatores comparativos esdrúxulos. Religiosos acreditam que a diferença entre a vida e a morte são tão grandes quanto um elefante e uma lagartixa, mas esquecem de que ambos têm quatro patas, por exemplo. Então, por acaso, podemos classificar como vivo um ônibus só por ele ser tão grande quanto o próprio elefante?
Escrevi que estou morto, e então aquele ou aquela que leu até agora fica pensando: que belo falastrão mentiroso é esse? Que ignóbil embuste é esse homem, que afirma estar morto, mas que escreve sobre isso? Então, sinto-me obrigado a lhe provocar, perguntando se não está tão morto quanto a mim, quem acredita não estar morto quem me lê. Deixe de lado suas crenças, jogue de lado este texto e mire seus próprios olhos no espelho. Esqueça tudo aquilo que eu escrevi até agora e procure vida nos seus olhos, procure-a em seu corpos, nos seus atos, e responda, não a mim, mas a si próprio, se há ainda lhe resta um sopro de vida, ou se sou apenas eu.
Quantos tapas aguentam um rosto? Quantos golpes aguentam um cérebro? E quantas chibatadas as costas? Qual é o limite da resistência? Qual é a conclusão? Só há uma conclusão, todo o restante são conjecturas de espíritos inquietos. Não existem limites para o sangue derramado, nem há limites para a dor. Limites são conclusões ou conjecturas? Torturas. Uma frase que expresse um conjectura termina numa exclamação, mas deveria terminar com um ponto de exclamação. A afirmação categórica da dúvida. Dor é pergunta, sangue é resposta; morte é pergunta ou resposta? Tenho tantas perguntas quanto forem suas respostas. Lembra que sou um escritor, fracassado, mas nunca derrotado, a não pelas suas próprias palavras escritas. Escrita é vômito. Rejeição.
Quando eu era garoto, bem pequeno ainda, minha mãe tinha tanta reclamação a meu respeito, que meu pai tinha a obrigação de preparar uma ripa cuidadosamente, com lixa e verniz, um instrumento polido, com uma empunhadura que estava sempre à espreita sobre a pingadeira da janela da cozinha. E ele sempre com sua obrigação de me castigar diante da minha interjeição. Até que ela ficasse em cacos e minhas costas em brasa e cheias de hematomas. Sempre fui muito magro o que era extramente favorável à sua ira meticulosa e ruidosa. Ele sabia que podia me castigar quanto quisesse, mas que a elasticidade de minha pela era tão grande quanto da minha resistência. Eu ia além dos limites da dor, e um dia escrevi “filho da puta” com lápis na tal ripa. Ele nunca soube ao certo se fui eu, mas ela permaneceu ali, intocada, sendo corrida pelo tempo. Aquilo foi o primeiro capítulo do conto de terror que eu escrevi. Depois foi o segundo, quando comecei a acordar de madrugada sendo sufocado por um travesseiro, e acordando de manhã sem saber se tinha sonhado, embora meu rosto mostrasse as marcas rubras. Nunca mais quis escrever estórias de terror.
Minhas noites são claras e em claro, e a boneca de carne ainda dorme no canto do sofá. A de pano está abandonada num canto qualquer do quarto. Algum canto escuro e deprimente, parecido com minha mente. Seria eu capaz de matar? Estrangular a boneca de pano? Médicos e monstros caminham de mãos dadas dentro da escuridão. Por horas fico pensando, com a fumaça do cigarro queimando as pontas dos dedos. Seriam os cigarros a causa do meu câncer, ou a mentira por trás da fumaça? A filosofia não está no cigarro, mas na fumaça. A poesia jaz junto com boneca de pano no fundo escuro do armário do quarto dos fundos. Há sempre um quarto dos fundos, mesmo que não fique nos fundos. Ou em canto nenhum da casa. Todas as casas são assombradas, e os fantasmas sempre serão os outros. Como num filme em preto e branco exibido num cinema que não existe mais.
A tempestade derrubou um anjo. Ele agora está todo sujo de lama no fundo do quintal. Ninguém acredita que é um anjo, porque ninguém acredita em tempestades. Eu acredito na lama: acredito na terra de que são feitos os deuses e as casas, acredito na água que os dissolvem. Tudo é lama: tudo escorre e tudo morre, pelas tempestades.
Tem uma porta no fim de um corredor, e não sei se é de entrada ou de saída. Depois dela uma escada que não sei se é de descida ou de subida. E no fim há uma mulher, que não sei se é uma puta ou uma santa. Nada é certo, nada é errado, tudo é apenas tudo. Não existe o nada, como não existe o não. Tudo é um eterno sim, girando e girando, feito uma espiral sem fim. Nada é nada. Somem zeros e não terão nada, somem uns e terão tudo, é que nos ensina a lógica; mas se ainda somarmos zeros com uns teremos outros tudos, tanto quanto. Então o talvez seja a resposta. Talvez seja, talvez não seja. Que amontoado de conjecturas estúpidas eu dei de escrever agora… Ah, mas são apenas passatempos mentais que crio para me distrair na ultima cela do corredor da morte. Palavras cruzadas, se bem posso dizer.
Pedi que bebesse comigo, mas ela não podia, por ordem do médico. Pediu-me comprimidos, sentia dores que não tinha, e eu recusei. Ela tinha medo de morrer louca, mas enlouqueceu e me matou, com a mesma faca que usava para descascar cebolas sem chorar. Eu sabia que um dia ela iria me trair, mas mesmo quando ela foi embora, alegando que eu tinha tentado lhe matar, levando consigo, eu sabia que ela iria voltar, pois como dizem nos livros policiais, o criminoso sempre volta à cena do crime. E ela voltou. Precisava consumar o que não tinha antes. Esperei seu retorno, atrás da porta escondido. Sabia que chegaria na madrugada, sorrateira e bêbada, mas o que entrou foi apenas uma sombra, nada que de fato se parecesse com ela. Era arcada e doente, e mesmo assim pedi que bebesse comigo. Ela recusou novamente e eu, mais uma vez, recusei a lhe dar o remédio que pedia. E ela novamente me matou, e depois espalhou meus pedaços pelos cantos, como se fossem iscas para apanhar ratos.
Assumo perante todos que estou morto, plenamente, do mesmo jeito que assumi perante o mundo minha existência. E presumo de todos que jamais serão capazes de subir num palanque e gritar, ou mesmo pegar um pedaço de papel e escrever: “Eu Estou Morto”, em letras de forma vermelhas. Seria deveras mais fácil que comprassem uma corda ou um pacote de veneno de ratos e acabassem de vez com aquilo que chamam de “vida de merda”, numa declaração completa de independência, tanto das igrejas quanto dos governos. O mais puro e absoluto estado de anarquia. Quanto a mim, ao me declarar morto, trato além da independência e da anarquia, de provocar, pois nada pode incomodar mais aos vivos que um morto no meio de uma sala de estar, jantando na mesa, andando no mesmo ônibus e escrevendo que está morto, quando querem que não esteja.
Pense em um sujeito, como em um episódio de “Além da Imaginação”, que celebra um pacto de imortalidade em troca da alma. Depois de algum tempo, enfastiado, procura acabar com sua existência tentando, sem sucesso, o suicídio. Em sua ultima atitude de desespero, assume-se como homicida da morte acidental da esposa, na esperança de que, condenado à cadeira elétrica, possa enfim morrer, mas a justiça decide que ele será condenado à prisão perpétua. Tal forma de penalidade, que seria uma dádiva a qualquer ser humano normal, torna-se a ele um pesadelo maior que a morte. Sua única saída é apelar a uma clausula que, enfim, entregaria sua alma ao signatário do contrato: o próprio Diabo.
Calendários se sucederão nas paredes, e as modelos estão cada dia mais velhas, até que morrerão, e serão trocadas por mulheres cada vez mais nuas. Tudo se renovará, tudo será trocado, substituído. Imagine esse sujeito, de todas as formas, tentando acabar com sua existência dentro de uma cela, com cordas, fome e tudo o que puder encontrar, mas nada que possa, enfim, dar cabo da sua miserável e imortal existência. Minutos lhe serão dias, anos, décadas, milênios; cada batimento cardíaco lhe parecerá o som mais odioso; carcereiros se sucederão, grades enferrujarão, paredes se esfacelarão. E tudo será refeito e reposto.
Então, pense em outro sujeito, que sem nenhum pacto demoníaco, sem coragem de acabar seus dias, e que encara o tempo que resta, seja qual for, entre o agora e seu fim, como uma eternidade. Pense num sujeito que assume homicídios imaginários para ser condenado à morte e assim escapar de tortura que é existir, mas que é condenado a uma prisão perpétua. Sem nenhum contrato com uma cláusula que entregue ao outro signatário sua própria alma, pois que essa já foi, muito tempo antes, entregue. E não em troca da imortalidade, mas do mais mortal de todos os sentimentos: o amor.
Em minha escrita, especialmente no estilo que sempre foi minha paixão maior, a poesia, duas palavras e seus devidos sinônimos se sobressaem absurdamente: “morte” e “puta”. E mesmo quando não são o mote principal do poema, elas sempre aparecem. Eu mesmo já me perguntei muitas vezes sobre o motivo desses assuntos terem tanta importância, a ponto de serem retratados na maior parte da minha poesia, muitas vezes em conjunto, e francamente não tenho a explicação. Desde meus primeiros poemas na adolescência, essas palavras já tinham grande proeminência. Ao contrário da época e idade propícias a temas amorosos, minha atenção poética é totalmente dedicada às possibilidades de prazer e de morrer. Com relação às putas, além do significado mais direto, eu entendi de ampliar seu conceito a tudo que envolve prostituição humana, ou seja, aos prazeres renegados, aos que se entregam aos desejos não pelo prazer sexual, mas por outros fatores, e toda sorte de servidão humana, mesmo que a involuntária. Já com a morte, sempre travei com ela uma luta titânica, possivelmente fruto de uma infância miserável, tanto no sentido financeiro como no moral, fruto da rejeição e violência com que convivia. Desde os primeiros momentos que recordo como nascimento da consciência, a eminência parda da morte se faz presente. Primeiro acreditei que morreria antes dos 18, depois aos 27, aos 33, antes dos 40… E agora aos sessenta ainda a sinto.
Tudo o que se acredita existe. Tenho usado essa frase em respeito aos religiosos em duvida de sua crença, ou mesmo sobre doenças aos hipocondríacos, mas poucos entendem que isso é de fato o que penso sobre o ato de ser considerado vivo. Não há vida quando não se acredita que ela, de fato, exista.
Segundo a psiquiatria, todas as pessoas sonham quando dormem, mesmo que não conseguem se lembrar e ou relatar as histórias desses sonhos, e tenham a sensação de que não sonham. Já os idealistas falam sobre outro tipo de sonhos, aqueles ideais ou objetivos que estão apenas no campo da imaginação, mas sem qualquer possibilidade de realização. Chamam isso de “sonhar acordado”. E ambos, psiquiatras e idealistas, convergem na mesma conclusão: apenas mortos não sonham. Afinal, uma das definições ateístas sobre a morte é simplesmente dormir sem sonhar. E, completo eu, não mais conseguir sonhar acordado.
A existência é o espaço, a morte é o tempo. Ou teoricamente ao inverso, no universo da relatividade. Não temos medo da morte, temos medo do tempo. Não existimos, apenas percorremos um espaço dentro do tempo. O tempo engolindo o espaço feito um “Buraco de Minhoca”. E a filosofia, que não é ciência, apenas uma forma de marcar o espaço e percorrer o tempo.
Meu querido leitor ou leitora, mesmo eu dizendo que estou morto, não me pergunte como é o rosto da morte, não tive o gosto. Apareci em sua morada sem ser convidado, e na hora errada, segundo me disse. Estamos sentados ao redor de uma enorme mesa de jantar. Em meu prato não há comida, enquanto no seu, três cabeças humanas que devora em silêncio, sem erguer a cabeça. Tento olhar em seus olhos, que são tão profundos que não consigo enxergar. Pergunto sobre Deus e o Diabo e seus dedos longos e magros apontam a porta do banheiro. Seu silêncio talvez me diga que não sou bem-vindo, talvez seja. Quem sabe o que me diz o silêncio da morte? Insisto com perguntas. Quero saber do Inferno e do Céu, e um braço esticado com uma mão aberta me indica a única porta em todo o ambiente. Penso estar sonhando e quero acordar, mas sou seguro por uma mão firme. Tento me desvencilhar, me debato, e por fim desisto. Meu prato, enfim, tem um repasto, uma cabeça humana. Apenas uma. E nela reconheço meu próprio rosto.
Para além do bem e do mal deus está morto, e quem o matou foi quem o criou. Não existe o bem, não existe o mal, apenas o humano, demasiado humano, a natureza humana, acima do bem e acima do mal. E a natureza humana é composta pelo medo. O medo é o que conduz a humanidade, para além do bem e do mal: para as conquistas e para a destruição, para a origem das religiões e da política; para as doenças, para os crimes; para os desejos, e até mesmo para o amor. Alimentamo-nos de medo, do próprio e do alheio. O medo é o que nos dá força e o que nos derrota; o medo é o que nos impele contra a parede e nos joga dentro do fosso escuro, o medo é o que nos une e nos separa; o medo é que nos faz existir. E morrer. Não existe o bom, não existe o mau, existe o medo, apenas. Não existe o certo e não existe o errado, não existe o sim nem o não, não existe sequer o talvez e o quem sabe, apenas o medo. E o medo é a morte. Morte é o medo.
Dias atrás liguei a meus pais: disseram que não conheciam ninguém com meu nome; liguei a meus filhos, que disseram que seu pai era um desconhecido; depois telefonei a meu irmão, que disse ser filho único; tentei abraçar minha mulher, mas ela não retribuiu; escrevi a vários amigos que não responderam; meu perfil no Facebook sumiu, meu Whatsapp não tem foto; procurei por fotos antigas minhas e não as encontrei; e quando olho no espelho vejo alguém que não reconheço. Na banca de jornal nenhuma noticia sobre mim, na televisão nenhum programa sobre meu ultimo livro, na Internet nenhuma entrevista sobre minha poesia. Quando me toco é como se tocasse algo inerte, plástico, e quando ando parece que nunca estou indo a lugar nenhum, e meus pés parecem que não pisam em nada. Digo bom dia e ninguém responde, digo olá, alô e oi, e não ouço resposta. Olho para cima e tudo me parece tão grande, e olho para baixo e não vejo nada.
Por fim, prometi aos senhores e senhoras, leitores e leitoras, que faria um relato póstumo, que contaria sobre os pensamentos e sentimentos de um morto. E estou plenamente certo de que não os enganei, estou certo de que o fiz.
05/03/2019
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