Agora são doze horas e doze minutos, o que eu avalio pela fumaça do meu malboro, ziguezagueante, através dos raios de Sol, frente a minha vista. Parto sem destino rumo ao sul.
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Caminho rápido ao longo de quatro quadras sobre um Sol escaldante. O ponto de táxi fica a trinta metros da padaria, onde quero comprar uma coca e um pacote de baconzitos. As duas malas pretas, dessas de couro, antigas, paralelepídecas, com uma alça para a mão, estão pesadas pra caralho. Digo pro taxista olhar minhas malas, enquanto vou até a padaria, que depois pegarei o táxi para a rodoviária. Ele me diz que nem fodendo, eu que cuide de minhas coisas, só tem ele no ponto, vai que chega outro passageiro antes e ele perde a corrida. Eu carrego as malas com muito sofrimento, trinta metros para ir, mais trinta para voltar com minha coca super-gelada e um pacote gigante de baconzitos, minha barba espessa e grisalha toda ensebada, tinha passado a noite toda sem dormir. Os sovacos suados, fétidos. Volto lá e é o mesmo motorista. Digo pra ele, toca para a rodoviária agora então. Ele tenta puxar assunto, eu fico fitando o infinito do céu através do vidro fumê. Lá dentro do veículo tem ar condicionado, mas lá fora está um calor do caralho, sigo pensando. Quando chegamos ao destino, o taxímetro marca vinte e seis reais. Ele me diz que faz por vinte e cinco. Eu saco a carteira, dela uma nota de vinte, outra de cinco e uma moeda de um real. Ele diz que a moeda de um real não precisa. Eu jogo a moeda com força na pança dele e digo, enfia a moeda no teu cu. Parto sem destino rumo ao sul.
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Música incidental vindo do smartphone da garota loura de cabelos encaracolados, vindo da mesma fileira do ônibus, três poltronas à esquerda, um amor em cada porto, ah seu eu fosse marinheiro, não pensaria em dinheiro, um amor em cada porto, ah seu eu fosse marinheiro, Adriana Calcanhoto (se não me engano). Solto um peido longo e constante, sem qualquer ruído, pior que o gás mostarda, a senhora da poltrona ao lado me fita com uma expressão de assombro, em poucos segundos, ao menos umas três fileiras de assentos do ônibus sofrem com a implicação de meus atos pregressos: duas coxinhas amanhecidas, um copo de groselha, uma coca e um pacote de baconzitos, que eu comi até o farelo. Eles sofrem calados e resignados, como Jesus Cristo em sua via-crúcis. Rezo pela alma deles, sei que sempre é mais suportável a própria cruz, os próprios gases que aquele do outro, é a lei do carma. Causa e efeito. Parto sem destino rumo ao sul.
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Chegando em Porto Alegre, o primeiro lugar em que eu vou é um karaokê chamado Babilônia Club. A temperatura em Porto Alegre está bem mais amena, mas como não tomei banho e viajei horas de ônibus, as mangas de minha camisa estão colando nos meus sovacos, donde se desprende um odor azedo, fétido, de baixa freqüência, que parece distorcer o espaço-tempo ao meu redor, faz de meu corpo uma massa pastosa e amorfa, sustentada apenas por uma frágil estrutura de músculos e ossos gravéticos, por sua vez a carregar duas malas pretas de couro paralelepípedecas. Deixo-as no canto, próximo do balcão e peço um rabo de galo, dois rabos de galo, três rabos de galo, e só então estou pronto para cantar. Escolho a canção Samba da Benção, de Vinícius de Moraes. Atravesso a melodia, erro a letra, e então o DJ acelera o ritmo da música, a casa está cheia, tem uma lista enorme de canções para ele botar e eu estou pagando o maior mico, ainda mais agora, com o Samba da Benção em ritmo de rap. Quando percebo a traquinagem, mando ele ir tomar bem no meio do olho do seu cu, do microfone mesmo, em alto e bom som. Uns perceberam que a música foi drasticamente acelerada e tomam meu partido, outros me vaiam e mandam eu me foder, vai se foder bêbado, grita um bêbado gaúcho alto e magro, usando gola role. Eu grito vai se foder você seu gaúcho viado. O Babilônia Club ferve, vira uma confusão generalizada, copos voam, sopapo pra tudo quanto é lado, eu pego uma garrafa das grandes de Heineken que está pela metade na mesa ao lado e, segurando-a pelo gargalo, dou um golpe só, com toda a minha força, de baixo para cima, estraçalhando-a bem no queixo do DJ, a papada dele abre de fora a fora, descola a pele, agora é sangue jorrando para todo o lado. Nessa hora um merdinha tenta me defender de vários caras que partem pra cima de mim, ele abre os braços entre eu e os caras, é nessa hora que eu escapo, fujo correndo pelos fundos, mas deixo minhas malas para trás. Saio correndo pela rua estreita, gritando filhos da puta, filhos da puta, pela noite escura como o breu. Sem as malas fica mais fácil a minha locomoção e dou graças pelo incidente. As malas que se fodam. Parto sem destino rumo ao sul.
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Com muito custo e no limite de minhas forças alcanço o Hotel Scala, faço o check in roçando minha barba e fazendo cara de poucos amigos para o gerentezinho simpático, engomadinho, apenas mais um bosta, subserviente a estrutura de castas sociais, evidente na capital gaúcha. Moleque babaca, eu penso, e respondo ao mínimo possível das perguntas do seu formulário. Para algumas de suas perguntas, eu apenas rosnava, para outras, permanecia em silêncio fitando-o profundamente, com cara de ódio. Por fim, depois de uns dez minutos, ele se deu por vencido. O seu quarto é o 304, Senhor. Grrrr, eu assenti. Não é que eu seja maleducado, estava apenas cagando e andando para ele, além de realmente cansado. De tudo. Liguei o chuveiro bem quente, tirei minhas roupas. Nesse momento você pode me imaginar, homem de meia idade, um pouco grisalho, barba estilo lenhador, mal desenhada no rosto, um metro e setenta centímetros de altura, uns cento e trinta quilos, obeso, mas um bocado parrudo e peludo pra cacete, enfim, traçando uma analogia, coisa feia de se ver, um cão chupando manga. Permito-me relaxar de pé no box do banheiro, sob a ducha forte e quente, revigorante. O sabonete do Hotel Scala é verde e minúsculo, mal dá para ensaboar as partes. O shampoo, fedido igual a desodorizante de automóvel. Permaneço assim, imóvel, sob essa cachoeira, fitando os azulejos azuis a minha frente, revestindo a parede. O rejunte é praticamente invisível, revestido por uma asquerosa camada verde de musgo. Noutros lugares, onde não há musgo, ou ele se desprendeu, o rejunte é preto de camadas pré-históricas de fuligem, camadas e mais camadas sobrepostas, ignoradas, desprezadas, omitidas pela rotina diária da limpeza, que era parca, apenas uma atividade pró-forma, a qual o administrador do hotel fazia vistas grossas, e os hóspedes desconversavam como se fosse espécie de acordo silencioso revertido em diárias super econômicas. Depois do banho, caí pelado e de costas sobre a cama de casal de molas, as pernas e os braços abertos. Não ouvi, mas devo ter roncado como um porco. Parto sem destino rumo ao sul.
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Só quando despertei no outro dia eu me dei conta do quanto estava enrascado, além de ter perdido todos os meus pertences, deixados em duas velhas malas pretas de couro paralelepípedecas, dei falta dos meus documentos, do cartão de crédito e de um montante de dinheiro em espécie que trazia comigo, eu tinha perdido a minha carteira. Eu podia jurar que trazia a carteira comigo, no bolso direito da calça preta de pano, como de costume. Mas não dessa vez. A lei de Murphy é implacável, ela te abraça nos momentos mais singulares, para fazê-lo lembrar de sua força, não a minha, a força dela, para mostrar o quanto é forte a lei. Desço para o café da manhã, mas ele já havia encerrado. O relógio marcava dez horas e quarenta minutos e a entrada para o café da manhã no salão do Hotel Scala se encerrava pontualmente às dez mais trinta, me explicou a recepcionista. Mas isso com algum jeito, boas maneiras, um bom dia, o por favor usado no momento adequado, porta de acesso, passaporte, para as necessidades vitamínicas, de carboidratos, de proteínas, pães diversos e uma boa xícara de café preto. Do salão do hotel eu parti direto para a rua, já que não tinha um puto no bolso, sai batido do hotel. Caminhei por algumas ruas de Porto Alegre a esmo e com vagar, observando a correria das pessoas, com tantos afazeres, ideias na cabeça, até que dei de frente com uma grande rede de magazines, as Lojas Centauro. Ponderei que se fosse para prejudicar alguém, que fosse um estabelecimento como aquele, uma loja grande, onde o desfalque dividido pelo total das vendas, resultasse num valor tão próximo quanto possível de zero. Disse bom dia para o atendente, pedi para experimentar uma camisa branca social de manga longa, calças pretas também sociais, cuecas samba canção amarelas, meias pretas sociais, cinto e sapatos pretos confortáveis e de couro. O atendente pegou alguns modelos, variações sobre o mesmo tipo de roupa que uso desde os meus vinte e poucos anos, disse para eu usar o provador. As meias e as cuecas eu as tomei furtivamente e as botei nos bolsos de uma das calças, antes de seguir para o provador. Fui até o provador onde deixei dependuradas as minhas próprias roupas, vesti-me com calma, olhei-me no espelho, bem alinhado, agora sim, estava tudo bem. Olhei pelo vão da cortininha e, quando um cliente interpelou o atendente com uma pergunta, deixei rápido o provador e sai andando naturalmente da loja, como se nada tivesse acontecido. Imiscui-me em meio ao vai e vem das criaturas no centro de Porto Alegre, ali eu era apenas mais um, uma simples alma em meio ao cardume de tantas outras, caminhei por quase uma hora, deixando o centro, paralelo às vias que levavam para fora da cidade. Acenei para um caminhão que transportava fardos de lenha. O veículo parou alguns metros a minha frente, no acostamento à direita. Eu perguntei ao motorista para onde é que ele ia, vou levar essa carga para Passos de Torres. Eu pedi uma carona e montei na boleia do Mercedes Benz. Era impressionante, o pen drive do cara só tocava Raul Seixas. Infinitamente. Várias versões de uma mesma música, algumas muito mal gravadas, por sinal, depois outra e mais outra, algumas delas eu nunca tinha escutado, mas era sempre Raul, e o motorista parecia não se importar com isso. Meio sem saco para conversas, perguntei ao motorista se ele gostava de Raul Seixas. Ele não respondeu a minha pergunta. Ele, ao contrário, parecia animado por ter alguém com quem conversar. Contou que vinha de Pelotas, donde tinha saído muito cedo, antes do Sol nascer. Então iriam para Torres, a cidade litorânea mais ao norte do Rio Grande do Sul. O dia era limpo e ensolarado. Veja como o dia está bom para um mergulho no mar, ficar de bobeira na areia, pena que eu tenho de retornar ainda hoje para Pelotas. O motorista contou que bastavam cruzar a ponte sobre o rio, em Torres, e eles estariam em Passos de Torres, já no Estado de Santa Catarina. Lá ele iria descarregar os fardos de lenha, almoçar e tomar a estrada de volta. A volta é sempre mais rápida, sem a carga, mesmo sendo morro acima. Mas ele disse que se fosse sexta, ou dia de sábado, esticaria até Mira Torres, que fica logo adiante de Passos de Torres, que por sua vez é a cidade seguinte de Torres, e teceu explicações sobre a lógica intrínseca destes nomes de cidades gaúcha e catarinenses, na ordem das progressões de suas distâncias. Explicações óbvias, desnecessárias, dessas usadas por quem está simplesmente querendo manter o diálogo, aplacando a solidão do quotidiano dos motoristas de caminhão. Contou que em Mira Torres ele tinha um amigo, Roberto, sua esposa Beatriz e a filha Fernanda. O motorista e Roberto tinham estudado desde o terceiro ano do fundamental juntos, nenhum deles terminou o ensino médio, mas quanto a isso ele não mencionou a razão. Ele morava numa casa de praia, simples, mas muito bem cuidada. Roberto era pedreiro e ele, o motorista, costumava pernoitar por lá, se era fim de semana e, principalmente, se estivesse fazendo Sol, com o céu limpo, dia quente de verão, para um banho de mar em Mira Torres e um bate papo descontraído com o amigo de longa data. Em nenhum momento o motorista disse o seu nome ou perguntou o meu. Em nenhum momento perguntou o que eu ia fazer por aquelas bandas. Pensei em como os gaúchos são discretos, ou talvez o tipo de pessoa que toma caronas seja um tipo desinteressante, mais um bom ouvido que boa boca, com uma vida vazia e erma, tão contada e recontada que já não lhe dava atenção, ou, por ventura, um misto de ambas as coisas. Eu ajudei o motorista a descarregar os fardos de lenha. Para isso, antes eu tirei a camisa branca social e a dobrei com zelo, deixando-a sobre o assento, na boléia do caminhão. E, depois, feito também o trabalho com calma e cuidado para não suar muito, não sujar a calça preta de pano, também social. Minha única vestimenta. O motorista pagou o almoço num restaurante barato e ainda me deu trinta reais pela ajuda com o trabalho. Você adiantou o meu dia em uma hora e meia, ou duas horas, obrigado e até mais. Então, antes dele partir, perguntei o seu nome. Meu nome é Anderson, ele respondeu, sem perguntar como eu me chamava. Melhor assim, pensei cá com os meus botões. Parto sem destino rumo ao sul.
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Com nove reais mais vinte e cinco eu compro uma vodka balalaika bem gelada, e ainda me sobram vinte reais mais setenta e cinco, em cash. Eu estava me sentindo muito bem, com roupas novas, descansado, bem alimentado, o parrudo com a sua barba de lenhador mal desenhada. Sigo tomando a balalaika aos poucos, enquanto caminho de Passos de Torres para Mira Torres. Boas três horas e meia de caminhada, aos goles da vodka barata, que aos poucos ia aquecendo. Mas beber e caminhar era técnica que eu havia desenvolvido desde a adolescência, quiçá, de vidas pregressas, outras encarnações. Quando se bebe ao caminhar, o álcool é absorvido e queimado mais rápido, funcionando como um amortecedor das ideias com ação analgésica concomitante para a jornada. Chegando na praia de Mira Torres, apesar de um leve bafo de álcool, eu ainda me sentia otimista e bem apessoado, cabelo e barba grisalhos, roupa social. Fui perguntando para um camarada aqui, outro acolá, elicitando, até que, enfim, já quase ao final da tarde, o cara da mercearia me disse, tu segues duas quadras, dobra à esquerda, tu desces uma quadra, vira à esquerda de novo, é no meio dessa quadra, do lado esquerdo, é lá que ele mora. Parto sem destino rumo ao sul.
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Dou três socos na porta, não muito fortes, não muito fracos, pancadas assertivas, seguras de si. Roberto. Roberto. Uma linda loura gaúcha, de pele muito branca, olhos muito azuis, bunda e seios firmes, generosos, portando uma cabeleira encaracolada que lhe caia até cinco dedos abaixo da linha dos ombros. Deve ser Beatriz, pensei com os meus botões. Roberto está? O Roberto foi dar um mergulho no mar, ele sempre faz isso no fim da tarde. Já volta. Você deve ser Beatriz, não é? Sim, sou eu mesma, ela faz uma cara de preocupada, talvez pelo inusitado da situação: um cara de estatura mediana, cento e trinta kilos, aquela barba de lenhador mal desenhada, a roupa social, os sapatos pretos, brilhantes, de couro. Eu a acalmei com a minha fala. Eu sou bruxo (amigo, em bom gauches) do Anderson, o motorista, faço frete de carga também, o meu caminhão quebrou, precisou de um conserto, perdi dois pneus e amassei a roda num buraco, numa cratera, deixei no borracheiro em Passos de Torres, ele me disse que é bom com o martelo para desentortar a roda, não tinha onde dormir, passei um rádio para o Anderson, ele disse que não sabia, mas talvez eu pudesse pernoitar na casa de vocês. Ah… pode sim, uma mão lava a outra, o Roberto já chega, são amigos desde antes de eu conhecer o Roberto, o Anderson. Por sorte a Fernanda não está em casa, foi dormir na casa de uma amiga, diz que é trabalho de escola, mas nessa idade, não sei não. Mas a gente também tem o direito de se divertir, não dá pra ficar o tempo todo na cola da menina, né?! Entra, quer um café? O Roberto já vem, senta aí. Passa um café fresco, com calma, com a água aquecida no fogão a lenha, ao invés de filtro de papel, coador de pano, adiciona quatro sementes de cardamomo, eu fico sentado à mesa, a fitá-la. Ela chega com três jogos de xícaras e pires, depois traz o bule de café fresco, fumegante, a saborosa fumaça incensando o ambiente. A porta da sala dá para a praia. Ao longe vejo um homem alto, moreno, tipo atlético, ainda assim magro, que vem caminhando lentamente da praia em direção à casa. Ela acena com a cabeça na direção dele, Roberto. Roberto entra e Beatriz começa a falar. Primeiro me apresenta, esse aí é um amigo do Anderson, diz que teve um problema com o bruto, quer pernoitar aqui em casa. Eu não preciso falar nada, só estendo a mão e digo, prazer Roberto, ele diz prazer amigo do Anderson. Nesse ponto fico imaginando se já não é um absurdo esse desinteresse pelo outro ser humano, coisa de gente dali, muito na deles. Beatriz e Roberto engatam uma conversa sobre o dia a dia, o que você fez hoje, amor? E aí, deu certo de pegar a nova obra? E a outra, quando termina? Você também tem de descansar, Roberto. Hoje eu estou aqui contigo, não estou, Bia? Eles se beijam, era como se eu fosse completamente invisível, não pertencesse às mesmas dimensões do espaço-tempo do universo deles. E, é bem provável que, de fato, não. Ou talvez tivessem pressentido algo de podre na minha aura, algo cinza, ou denso, ou pesado, ou enuvarado. Roberto me diz, dorme lá no quarto da Fernanda, aqui a gente deita cedo. Ele toma um banho demorado, se arruma devagar, depois vai para o seu quarto. Beatriz já está lá. E assim eu faço também, tomo um banho e me fecho no quarto de Fernanda, quem sou eu para recusar o pernoite. São oito horas e eu me deito, não consigo pregar os olhos, é muito cedo, o sono não vem. Em geral eu durmo tarde, acordo cedo, sofro de insônia. Leio uma antiga revista Manchete, que é o único texto que me agrada no quarto da menina. Nada de Harry Potter, romances adolescentes, livros de ficção, alguma coisa de misticismo, psicologia, religião, não, apenas a revista Manchete, com muitas fotos de celebridades, textos curtos, letras grandes, legendas com os nomes das atrizes, tudo numerado, organizado, então essa gostosa aqui se chama X, e aquela gostosa lá se chama Y. Nunca me lembro dos seus nomes. O rádio no quarto do casal toca Kid Abelha Acústico MTV, num som que, lá dentro, deve estar num volume bem alto. Não demora muito para que os gemidos, gritos truncados de penetração, coisas que eu não sei, mas posso imaginar, que devem estar acontecendo entre Beatriz e Roberto, alguns gritos dele também, mais espaçados, ah…, mete, mete, assim, mete, mete, mete mais, na voz de Beatriz. E isso vai se estendendo, das quinze para as nove até quase uma hora da manhã. A coisa toda acontece em ciclos. São três ciclos de quinze minutos de ação com intervalos de cinco minutos entre eles, completando cada hora de sexo selvagem, pura entrega. O ápice, os orgasmos de Beatriz, parece se estender por quase oito minutos, quando ela uiva baixo, geme, grita abafado mete, mete. O de Roberto é mais pontual e intenso, acontecendo sempre entre o décimo segundo e o décimo terceiro minutos. Mas cada jogo, vamos chamar assim, parece uma nova música, uma nova sinfonia, de diferentes ritmos, outro tipo de encanto. Eu sei disso porque não consigo adormecer até que tudo termine, com o Kid Abelha ao fundo, em modo repeat ao reiniciar o DVD. Resultado: uma taxa de três punhetas por hora para mim, acordo noutro dia com o pau ardendo de esfolado. Ao despertar fico imaginando como eles conseguem foder tanto, fico imaginando quanto amor tem um pelo outro, porque isso é evidente, a marca registrada de cada uma das treze sinfonias de sexo, uma reciprocidade, cumplicidade, um querer amar de deixar qualquer observador cabisbaixo, se sentindo um merda, só de imaginar ser possível existir amor daquele tamanho. Ele com tão pouco, o pau esfolado, a cabeça baixa no café da manhã. Beatriz nem liga, está iluminada, fala, conta da sua vida com alegria à mesa do café, parece cantar, mas fala, um sabiá transmudado na forma de mulher. Roberto, um pouco mais contido, mas milhões de anos luz adiante da insignificância e uma boa dose de vergonha que me afligiam. Muito. Disse, obrigado, até mais, e sai caminhando pela praia de Mira Torres. Os sapatos e as meias sacados, estes e a camisa branca dobrada eu carregava em minhas mãos, a calça social preta dobrada até pouco abaixo do joelho, seguia sobre a fronteira móvel das ondas na areia, procurando manter a água do mar ao nível de meus tornozelos. Ah… a liberdade. Ah… a liberdade. E, no fim, não é nada disso. Parto sem destino rumo ao sul.
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Em Passos de Torres, ainda na orla, cruzo com uma vendedora de brincos, miçangas, biquínis, que, por razões óbvias, me fita ao longe, mas vira o rosto quando estamos nos aproximando. Ela não é feia, apenas um pouco seca demais, com a pele judiada pelo Sol e de caminhar pela praia o dia todo, parece também meio riponga, ou algo mais pesado, deve ter se introduzido recentemente no mundo do crack, ou talvez o limiar entre uma coisa e outra, vai saber. Então eu me dirigi a ela e perguntei, quanto custa este brinco, apontando para um jogo de peças no formato de gotas curvadas, deviam ser de prata, por certo, formas fluidas, como as ondas, como o yin apenas, como o yang apenas, separados um do outro, ideia da mente de algum artesão muito maconheiro e com um bom equipamento para a fusão. Estes custam oitenta reais, meu senhor. E para irmos atrás daquela construção e darmos uma rapidinha, quanto é que fica? Tem camisinha? Tenho. Então são cem reais, ela se empinou, exibindo o corpo. Eu não podia perder aquela chance de liberar o tesão recolhido da noite anterior. Então caminhamos em direção a construção, para trás de um muro de lajes planas pré-fabricadas, bem rente a praia. Além da construção, pela metade, tinha um bocado de areia e um bocado de mato verde, como se a obra tivesse sido abandonada a própria sorte. Ela encostou a bolsa e o quadro com as pratas e as miçangas no muro, tirou a roupa, me pediu a grana e a camisinha. Eu enfiei a mão no bolso, saquei tudo que havia lá e lhe dei. Vinte reais mais setenta e cinco, nada de camisinha. Ela me disse, mas o que é isso? Isso é tudo que eu tenho, pronunciei com um ar desolado e honesto. Olha, você não quer levar umas pulseiras de couro, ela tentou desconversar. Não, eu preciso de você, eu disse. Olha, por isso aí, só se for um boquete, pode ser? Eu assenti com a cabeça, abri o botão da calça de pano, baixei o zíper e a parte da frente da cueca samba canção amarela (para dar sorte). E o meu pau saltou rijo pra frente. Ela me olhou com aquele ar de onde é que eu fui me meter? O meu pau era pequeno e fino, quase sem carne, sem músculo, parecia o osso da coxa de um frango. Com a glande à semelhança das cartilagens da extremidade maior do osso da coxa, o pinto com uma seção fina e a cabeça cheia de pelanca, fimose. Mas ela chupou bem, enfiou o osso de coxa de frango todo dentro da boca, pressionava a glande em direção a garganta, massageou a cabeça sebenta com a língua, depois roçou de leve a seção do osso com os dentes, então ela o tirou rápido da boca, astuta, enquanto aquele ossinho pulsava e expelia um generoso volume de sêmen. Olha, engolir, eu não engulo. Botou o biquíni, uma canga, pegou a mochila e o quadro de artesanato, e partiu. Deixou-me ali, suando e com o pinto murcho, a cueca samba canção agora arriada até a altura dos meus joelhos. E voltou para o seu trabalho como se nada tivesse acontecido. Parto sem destino rumo ao sul.
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Eu boto minhas roupas, deixo a orla e atravesso a ponte pênsil que me transporta de Passos de Torres (SC) para Torres (RS). Entro num restaurante simples, peço um copo d’água da torneira, explico que tive os meus pertences, carteira e celular furtados, o garçom se prontifica a ligar para a polícia, diz que num caso desses é recomendável ao menos que se faça um B.O., mas ele não sabe da minha história, então eu desconverso, digo que é desnecessário, depois eu cuido disso. Conforme os clientes vão deixando suas mesas, peço ao garçom para comer os restos de seus pratos e, logo, já estou almoçado. Agradeço ao garçom pela gentileza, peço desculpas pela situação constrangedora e me despeço. Sigo para fora da cidade, novamente margeando uma rodovia. Tento chamar a atenção dos carros com o dedo polegar da mão direita em movimentos pendulares centrados no cotovelo, indicando o sentido da via, ou, para quem não entendeu, pedindo carona, carona para qualquer lugar. Então pára uma camioneta branca com um grande refrigerador sobre o chassis, dois grandes marfins azuis formando um xis e compondo o logo lateral, placa de Gramado. Na Chevrolet branca estão o motorista e o ajudante que perguntam para onde é que eu vou. Digo que é para Gramado, mal entro no veículo e os dois começam a me contar sobre o trabalho diário do transporte de peixes, pegam o peixe fresco de Passos de Torres e os levam para a distribuição, a comercialização, o abastecimento das cozinhas dos hotéis e restaurantes de Gramado. Falam sobre os diversos tipos de peixes e outros frutos do mar, falam das suas quantidades em kilos, que transportam. Sobre as flutuações do mercado de acordo com as estações do ano, porque um determinado tipo de peixe é mais comum em tal e qual época, menos acessível nas outras, e assim é a dança da vida, de certa forma, a alimentação é apenas mais uma de nossas necessidades guiada pelos ciclos, a interagir com os ciclos de vigília e sono no ser humano, as fases da Lua, os ritmos dos ventos, das correntes oceânicas, estando assim, guardadas as devidas proporções, tudo interconectado, nós todos conectados através de anzóis, linhas de pesca, redes e outras estruturas de conexão, mesmo as nossas ondas cerebrais, a emitirem pulsos de alta freqüência, que são modulados pela freqüência dos batimentos do coração. Não estou aqui a discorrer sobre sístoles e diástoles apenas, estou, antes, me referindo ao metafísico associado a este órgão de natureza pulsante, vibrante e sensível ao meio, estou a discorrer das nossas escolhas, dos nossos sonhos, ao nível conceitual e potencial de construção da própria realidade, aquilo que verdadeiramente nos anima, nos faz seguir adiante, apesar das adversidades. Estou a tratar da fé, no seu sentido mais amplo. No amor, na caridade, no desejo de ver o outro feliz, em última instância, no anseio pela completude, na realização pessoal, a justificar toda a existência, se é que você me entende. Acho que não. Isso não foram eles que disseram, fui eu que pensei. Sou apenas um passageiro a ouvir, a ouvir, a ouvir, e registrar. Deixar fluir para dentro da mente, imiscuir aos sentidos, tirar as minhas próprias conclusões e sonhos, estes irão se materializar em breve. Sou gestante de ideias. Salto na cidade de Canela. Entro na Catedral de Pedra, escondo-me antes da nave ser fechada. Aqui passarei a noite só e em oração. Imerso aos cheiros de velas sendo queimadas, centenas de milhares de pedidos erguidos aos céus e agradecimentos por graças alcançadas reverberam simultaneamente na cavidade que é o interior daquela nave, edificada exatamente como um neurônio retransmissor do ser humano à divindade, para o equilíbrio de todo o cosmo. Deito-me sobre um banco da Catedral de Pedra e adormeço. Parto sem destino rumo ao sul.
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Na manhã seguinte o pároco se assusta ao ver-me deitado sobre um dos bancos da nave roncando como um porco. Mas poucos segundos depois, isso ele me disse depois, estava refeito do susto, porque sabia não se tratar de uma nova aparição de Jesus Cristo ou mesmo um desdobramento do Satanás com muitas cabeças, como fora descrito no apocalipse de São João Evangelista. Apenas um cara grisalho, centro e trinta quilos, parrudo, com a barba de lenhador mal desenhada no rosto, apenas um ser humano comum, sem grandes propensões para o bem ou para o mal, ele avaliou. Nada relacionado à ocorrência dos milagres, nada de possessões ou grandes distúrbios psíquicos, aqueles de natureza psico-cinética, exceção feita ao peido com forte odor de enxofre, ao bafo de centenas de serpentes, aos pêlos que remontam ao Tony Ramos, nada que estivesse de alguma forma relacionada aos mitos do herói ou àquele do asceta. Um bosta, apenas um bosta, com o perdão da palavra, ele me confidenciou. Sem saber como reagir àquela investida, eu disse que havia dormido na Catedral de Pedra porque precisava de confissão. Obviamente julguei que ele não tivesse qualificação para fazê-lo, e eu sairia ileso daquela sinuca de bico. Pois então vamos tomar um bom café preto, eu preparo, trouxe pão fresco e manteiga com sal, o pão é contado, mas deve sobrar um ou dois filões para você, sempre aparecem visitas inesperadas na hora do café, hoje foi você, depois eu faço a tua confissão. Trato é trato, retruquei. Então eu narrei para ele a história absurda de um cara que, sem norte, decide viajar sem destino rumo ao sul. Mas a história era outra, completamente diferente dessa narrativa sem pé nem cabeça, porque o que eu contei é como a minha vida devia ter sido, e também como é que ela foi, nada de sair por aí mandando os outros tomarem bem no meio dos seus respectivos cus, que se fodessem, cada qual a sua maneira e gosto, mas sim um processo conduzido por tênue encadeamento, de elos, uma fina corrente, filigrana, estes elementos de conexão flexíveis a unir as contas de vidro. Aquilo que eu narrei para o pároco, aquela jóia, era o que eu gostaria que você soubesse, tudo aquilo que eu não soube descrever aqui. Não por vergonha, mas porque de repente a vida se tornou um televisor cuspindo informações aleatórias, nunca uma história com continuidade, com altos e baixos, sim, a modularem a experiência, mas uma história com encadeamento, passível de renovação, de renascimento, como o Sol, como o dia, como a noite, como as fases da Lua. Então eu decidi mentir, omitir, distorcer, não na confissão para o pároco, mas na história paralela, nessa minha narrativa. Porque eu gostava de brincar de Deus, foder com os personagens, na mesma medida que Deus nos outorgou o livre arbítrio, enquanto eu escrevia. E isso tudo era apenas balela, de quem está fugindo, tentando esconder da vida a intensidade, enchendo-a de adornos, furtando-lhe a essência, do significado, e este não sou eu, em definitivo. Parto sem destino rumo ao sul.
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Caminho a pé da cidade de Canela para Gramado. Deixo para trás os meus pecados, deixo para trás a minha narrativa sobre um dos bancos da Catedral de Pedra. Daqui para frente, tudo o que está descrito nesse caderno foi anotado a priori, antes de se manifestar como realidade. Eu escrevo sobre um futuro que eu imagino, esse que é o da narrativa ficcional. Não a ideação mental da semente para a realidade da árvore, essa é outra história. Mas há ainda uma terceira possibilidade. Parto sem destino rumo ao sul.
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No meio do caminho vejo a sinalização de acesso para uma cachoeira. Caminho por vinte e dois minutos, os vinte e dois minutos mais longos da minha vida. Chego numa clareira que se descortina frente à trilha na mata. Eu vejo rochas, arbustos de hortênsias, borboletas brancas, ao fundo, a banheira cavada na pedra por uma imensa queda d’água. Tiro toda a minha roupa, dobro-a, organizo com zelo sobre uma grande pedra ao Sol, distante da água. Entro na água super-gelada aos poucos, molhar as bolas do saco é quase premonitório, dá um aperto profundo na garganta. Então eu mergulho, dou braçadas parrudas, toscas, porém vigorosas em direção ao centro da cachoeira. Entro debaixo dela, sinto a pressão da água sobre os meus ombros, sobre a minha cabeça. Então subitamente relaxo o corpo, deixo o fluxo me levar para a borda. Faço isso por três vezes. Na quarta investida sinto câimbras fortes em ambas as panturrilhas. Simultaneamente. Depois outra fisgando o abdômen, fazendo eu me curvar, sem reação, apenas tentando respirar, permanecer na superfície. É quando dou com a cabeça forte numa pedra. Aquilo que cada um acredita ser a realidade, a narrativa dum certo homenzinho parrudo ou o exercício da imaginação para a construção da realidade. Esta é a terceira via, como se fossem três as caixas do gato de Schrödinger [*]. Enquanto nas duas primeiras caixas, nunca sabemos em qual delas ele está, só a intuição é bússola precisa, ela vai de encontro ao gato, assim como o gato procura por ela. Enfim.
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Escrito de 27-fev à 02-mar-2017
[*] https://pt.wikipedia.org/wiki/Gato_de_Schr%C3%B6dinger
Revisto e publicado em 07-mar-2017
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