Por que Quadrinhos?
capa da revista de Frank Miller, HollyTerror
capa da primeira edição do Capitão
América em 1939.
Neste primeiro texto para a coluna sobre quadrinhos do Entrementes eu gostaria de apresentar um argumento sólido sobre a relevância dos quadrinhos na sociedade contemporânea. Acredito que assim como o cinema, as histórias em quadrinhos sejam uma manifestação artística típica da sociedade indústrial e pós-indústrial.
Assim como o cinema, os quadrinhos carregam em si a essência da sociedade na qual estão inseridos, uma espécie de “zeitgeist”. A própria história do desenvolvimento dos quadrinhos no início do século XX até os dias de hoje é um exemplo disso.
No início os quadrinhos eram meramente uma forma de entretenimento encontrado pelos jornais norte americano para venderem mais nos dias de domingo, tendendo mais para o humor, os “Sundaytimes” lançaram quadrinhos como o “Yellowboy” retratando as aventuras de uma criança de origem imigrante. Logo surgem as primeiras histórias em quadrinhos de aventuras como a pioneira “Tarzan” de Edgar Rice Burroughs em 1914, seguida das histórias do “FlashGordon” de Alex Raymond em 1934, “Príncipe Valente” de Hal Foster em 1937 – que inovou ao utilizar os balões como o conhecemos hoje – entre outros. Mas em 1938 quando dois amigos, Joe Shuster e Jerry Siegel criam o “Superman”, o primeiro super-herói, os quadrinhos ganharam uma proporção inimaginável, neste momento inicia-se o que se convencionou chamar de a era de ouro dos quadrinhos ou “a era heroica”.
O contexto da época influenciou profundamente os quadrinhos, a figura dos super-heróis como o Superman, Batman, Capitão América, etc, foram utilizados como estimulantes psicológicos, tanto para o “American Way of life”, como para auxiliar na superação do “clack” da bolsa, em 1929 ou mesmo ajudando no “front” de batalha durante a segunda guerra mundial. Momento inclusive em que o Capitão América teve atuação de destaque, exercendo forte influência sobre os soldados norte americanos que recebiam seus quadrinhos.
Os avanços tecnológicos visualizados no período de guerra e a violência e brutalidade da guerra, influenciaram no sucesso de quadrinhos como “Weird Science” de ficção e “Tales of Crypt” de terror pelo público, Logo, os estúdios de quadrinhos que produziam histórias de super heróis iniciaram um processo de infantilização dos super-heróis, dessa forma surge a figura dos ajudantes (sidekicks) – Robin, Superboy, Aqualad, Ricardito, etc – visando atrair as crianças.
Com a histeria anticomunista, iniciada com o advento da Guerra Fria, os quadrinhos foram atacados pelos críticos conservadores, sob a acusação de estarem vinculando ideias comunistas em suas páginas os quadrinhos se tornaram alvos da “caça as bruxas”, promovida pelo senador americano Joseph McCarthy.
O excesso moralista decorrido da intensa alienação anticomunista vinculado pelo governo americano criou um terreno fértil para o afloramento de um moralismo exagerado, logo, os quadrinhos passaram a ser os ingredientes da delinquência juvenil. Em suas páginas a violência e o sexo eram intensamente vangloriados, Batman e Robin eram gays, segundo o pensamento do psicólogo Fredric Wertham. Em 1954 Wertham lançou um livro acusando os quadrinhos de serem os maiores causadores da delinquência juvenil, tal obra teve uma grande repercussão, resultando numa audiência pública sobre o tema, no fim dos quadrinhos de terror, como os produzidos por Harvey Kurtzman – que após tal fato criou a revista “Mad”, como forma de criticar os motivos de sua censura, ou seja, os costumes americanos. Outro fruto do moralismo exacerbado na sociedade americana, evidenciado por Fredric Wertham, foi a iniciativa de criação do “Comics Code Authority” pelos próprios editores de quadrinho, como forma de se autocensurarem, evitando a interferência externa em seus roteiros. Uma das políticas tomada pelo código de quadrinhos foi a censura de cenas violentas e sensuais demais.
A esse momento descrito acima convencionou-se chamar de era de prata, pois para os quadrinhos de super-heróis, foi nesse momento que muitos outros heróis nasceram, a ficção científica resultou nos quadrinhos de heróis o surgimento de personagens que tinham como origem fatos científicos como explosões gama, raios cósmicos, e aranhas radioativas, a reformulação dos personagens devido ao comitê de censura, ocasionou numa maior atenção ao público mais jovem, resultando numa reformulação dos antigos heróis para aquele momento, assim, o Lanterna Verde, por exemplo, ganhou uma origem mais científica, deixando sua origem outrora mais mística de lado.
Porém, a própria conjuntura política norte americana ajudaria a mudar mais uma vez o cenário dos quadrinhos, a prosperidade econômica dos EUA naquele momento resultou num ingresso cada vez maior de jovens da classe média ao ensino superior, somando-se a isso a influência do movimento de contra cultura e a guerra do Vietnã, os quadrinhos voltaram a ter em sua órbita preocupações com os problemas políticos e sociais, dando início a chamada “era de bronze”, momento onde surge, por exemplo, os X-Men de Stan Lee, claramente inspirado nas lutas raciais americanas, e ainda a reformulação de outros personagens como o Lanterna Verde que teve uma história em conjunto com o Arqueiro Verde tratando sobre o problema das drogas, escrita por Denny O’Neil e Neal Adams, outro elemento apontador para as mudanças no roteiro foi a morte da personagem Gwen Stacy na revista “Amazing Spider man” 121 e 122 em 1973 escrita por Gerry Conway e desenhada por Gil Kane.
Outro acontecimento importante ocorrido nos quadrinhos na década de 60 e 70 foi o aparecimento do um cenário “underground” de quadrinhos, desenhistas como Robert Crumb ganham uma maior notoriedade com suas críticas ácidas há sociedade americana, movida a L.S.D.
A transição da era de bronze para a era moderna dos quadrinhos foi realizada em grande medida pelos talentosos artistas ingleses que imigraram para o mercado americano, nomes como Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison, que experimentaram na Europa a ditadura imposta por Margareth Thatcher e transferiram para seus quadrinhos críticas severas a extrema direita e ao capitalismo. Temos também Frank Miller com seu fabuloso “Batman o cavaleiro das trevas” que do ponto de vista estético é excelente, mas do ponto de vista político, vai se revelar como todas as obra de Frank Miller, como extremamente nacionalistas, extremistas e com uma visão distorcida dos fatos, como é o caso de 300 e do recém-lançado “HollyTerror”.
A principal marca da chamada era moderna foi te tornado o quadrinhos algo ainda mais sombrio, uma consequência do trabalho iniciado por Denny O´Neil, Gerry Conway e companhia na década passada, e potencializada pela própria conjuntura da década de 80 e os quase apocalípticos embates entre EUA e a União Soviética.
A década de 90 viu a multiplicação das mídias, principalmente do cinema, ofuscando os quadrinhos e comprometendo profundamente a indústria dos quadrinhos durante este tempo, neste momento a Marvel Comics decretou falência e as demais editoras enfrentaram grandes problemas. Por outro lado, muitos autores surgiram com propostas inovadoras, personagens como “Spawn” de Todd Mcfarlane, “Hellboy” de Mike Mignolla e companhia, foram responsáveis por darem um novo fôlego aos quadrinhos. Marcando um momento onde a figura do anti-herói e do controverso começa a ganhar espaço dentro da sociedade.
Finalmente, o início do século XXI, teve como evento marcante algo que mudaria profundamente os quadrinhos, os atentados terroristas de 11 de setembro, a partir dessa data, todos os quadrinhos sofreram reformulações. A guerra ao terror contou com um forte apoio inicial de alguns roteiristas, mas passado o fulgor imediato dos eventos, muitos quadrinhos passaram a exercer um papel crítico em relação a guerra ao terror, à administração Bush, como por exemplo as histórias do Capitão América (Captain America – 2002) escrito por Jonh Ney Rieber, que mostra o personagem engajado na luta ao terror, até o momento onde o mesmo percebe que o terrorismo é um desdobramento das políticas praticadas pelo EUA ao redor do mundo, vale ressaltar aqui também que Jonh Rieber foi demitido da revista na edição número seis por não escrever o ponto de vista que a Marvel Company queria passar, uma vez que o Capitão América é o grande estimulante psicológico das tropas americanas desde a segunda guerra mundial, não caberia bem, o mesmo ter um papel antigovernista, mesmo com essa censura, não demorou muito os próprios roteiristas, desenhistas, empresários passaram a conceber a guerra como uma erro, para alguns devido ao massacre de vidas, outros devido a própria inconsistência políticos dos motivos, ou por razões meramente econômicas, não importa, a partir sobre tudo da eleição de Barack Obama, percebemos nos quadrinhos uma pequena “esquerdização” ao estilo americano da abordagem interpretativa dos super-heróis no mundo real, portanto político. Estimulado sobre tudo pelo tom, levemente de esquerda manifestado pelo presidente Barack Obama no inicio de sua campanha e de seu mandato, superado depois por razoes politicas-econômicas.
Em suma, a resposta do título é simplesmente porque os quadrinhos, assim como todas as manifestações culturais são uma resposta aos eventos em ação no curso da história, dessa forma, a leitura de um quadrinho além de uma ótima forma de entretenimento, e estímulo a leitura e é também um documento de como a sociedade lida ou encare sua história recente.
Rodolfo Salvador
Rodolfo Salvador é professor de história e escreve sobre HQs.
Bem vindo!
Um ótimo texto sobre os quadrinhos em tempos que os canais de vídeo
ganham cada vez mais espaço. Ler se torna um ato prazeroso.
Se bem que leituras e vídeos são bem vindos.
Sucesso na coluna.