Quando o “pior” é “solução”
O título pode causar estranheza e até sugerir masoquismo ou coisa parecida. Como o “pior” pode ser solução para alguma coisa? O pior, via de regra é um problema para o qual se busca uma solução. De preferência a melhor.
Diante de uma situação insuportável, há pessoas para quem o pior desfecho chega a ser um paliativo ou até mesmo uma solução. Pode acontecer quando há uma sensação opressora de impotência em relação a um problema. Uma sensação dessa natureza pode levar alguém a fazer escolhas afoitas, até surreais, sem interferência da razão.
Há circunstâncias em que uma solução possível se torna um problema para determinado tipo de seres humanos. É quando exige mudanças drásticas na vida das pessoas, mas elas não estão dispostas a abandonar sua zona de conforto. Por comodismo ou insegurança, custa-lhes sair do lugar e caminhar até a “luz no fim do túnel”. Há quem se habitue e até se acomode ao próprio sofrimento. Não faltam também aqueles que transferem a outros a responsabilidade de encontrar uma solução para si mesmas. Verdadeiramente trágico é quando esse estado de consciência assume um caráter coletivo, com tão bem retratado por Konstantinos Kaváfis (Alexandria – 1863 – 1933) em seu poema “À Espera dos Bárbaros”:
“- O que esperamos todos reunidos nesta praça?
É que hoje chegam os bárbaros.
– Por que há tão pouca atividade no Senado? Por que a paralisia dos senadores? Por que não aprovam novas leis?
Porque hoje chegam os bárbaros.
Que leis poderiam votar os senadores? Quando chegarem, as ditarão os bárbaros.
– Por que o imperador levantou-se tão cedo e à porta principal da cidade segue sentado solenemente em seu trono, portando sua coroa?
Porque hoje chegam os bárbaros.
Nosso imperador está à espera do seu chefe. Preparou, inclusive, um pergaminho para ele, e lhe conferiu nomeações e títulos sem conta.
– Por que nossos dois cônsules e os pretores se apresentam hoje com suas togas recamadas de púrpura? Por que esses braceletes e tantas ametistas e anéis de esmeraldas cintilantes? Por que empunham bastões preciosos lavrados maravilhosamente em ouro e prata?
Porque hoje chegam os bárbaros e essas coisas os deslumbram.
– Por que os dignos oradores não vêm como sempre proferir discursos?
Porque hoje chegam os bárbaros e eloquência e arengas os aborrecem.
Por que, de repente, essa inquietude e essa confusão? Que seriedade nesses rostos! Por que rapidamente ruas e praças se esvaziam e todos voltam para suas casas preocupados?
Porque anoiteceu e os bárbaros não apareceram. Algumas pessoas que vêm da fronteira nos contam que não há sinal de bárbaros.
E agora, o que será de nós sem os bárbaros? Eles eram uma certa solução.”
Transcrito o poema, reflexões e conclusões ficam ao sabor dos leitores.
Por Gilberto Silos
O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
Konstantinos Kaváfis
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