Quimera – Capítulo Final
Por Milton T. Mendonça
O veículo dos sequestradores diminuiu a velocidade entrando á esquerda. Chegamos a esquina e viramos devagar. Os bandidos estavam a dois quarteirões a nossa frente. Seguimos devagar procurando passar despercebido. Rodaram pelo bairro passando duas vezes pelo cemitério partindo sem encontrar nenhuma criança. Seguimos em seu encalço até um local ermo onde escondido atrás de um aglomerado de árvores nativas o barracão era a única construção visível ao longo de vários quilômetros. O carro não estava à vista, portanto tivemos que descer e procurá-lo.
– Você acha seguro ir até lá?
– Não sei, mas precisamos. Ficar aqui não vai trazer respostas.
O caminho até o galpão era limpo. Para não sermos vistos contornamos seguindo as árvores e chegamos do outro lado do edifício. O automóvel estava parado próximo a porta de entrada. Indiquei tocando Elisa no ombro.
– Volte para o carro e deixe-o preparado. Vou entrar e se não aparecer ou der noticias em trinta minutos vá até a cidade e traga a policia.
– Tome cuidado está bem!
– Fique tranquila estou com a cruz.
– Tem certeza?
Retirei a cruz de Lucas do bolso e mostrei sorrindo.
– Certo.
Elisa murmurou e se afastou em direção ao veículo.
Corri abaixado e me encostei á parede do galpão. Observei pela fresta da porta e tudo era silêncio e escuridão. Forcei a maçaneta girando-a para a esquerda e nada aconteceu. Voltei a girar para direita e a porta se abriu com um estalo. Empurrei devagar e ela se abriu deixando a luz entrar iluminando parcamente o corredor refletindo em seguida na segunda porta, também fechada.
Entrei silenciosamente e encostei o ouvido na segunda porta. Nada! Empurrei-a e ela se abriu. Entrei e a luz negra invadiu minha íris como um chute. Pisquei várias vezes tentando forçar os olhos a se acostumar rapidamente com aquela faixa de onda desagradável. Encostei-me á parede e me arrastei para longe. Tudo era macabro e a falta de movimento me deixou nervoso.
De repente enquanto tentava decidir para onde seguir ouvi vozes se aproximando. Abaixei atrás de um monte de tábuas empilhadas a um canto e esperei. Ouvi o barulho de trava sendo aberta e o jorro penetrou pela fresta da parede iluminando o chão. A cor um pouco mais avermelhada sugeria uma frequência diferente de luz. O reflexo se espalhou e pude ver vários vultos sentados em cadeiras no centro do barracão. O susto quase me jogou para trás. Forcei a vista e não percebi movimento algum O barulho de casco sobre o chão de terra batida chegou aos meus ouvidos e pude ver dois espectros surgirem na porta. O rosto de ambos era horrendo. Olhos grandes e oblíquos nariz de narinas largas boca contorcidas com dentes pontiagudos. A barba e o bigode ralos contrastavam com a careca enrugada. Corpo disforme pernas longas e pés cascudos. Não usavam nenhuma vestimenta tudo era coberto de rugas e pelos esparsos. Com a luz negra incidindo sobre eles o horrível ficou tenebroso. Segurei a respiração e me abaixei horrorizado, mas não antes de ver seus olhinhos cruéis vasculharem o ambiente enquanto cheiravam o ar a sua volta.
Por um vão entre as tábuas consegui vê-los se sentarem nas cadeiras e se levantarem trazendo consigo os corpos como se os vestissem. Os espectros tomando a forma humana saíram porta a fora. Fiquei estupidificado. Caí sentado no chão completamente inoperante.
Despertei com o celular vibrando em meu bolso. Atendi e Elisa perguntou:
– Está tudo bem? Acabei de ver o carro dos monstros passarem por aqui. Quer que vá atrás?
– Não! Fique aí mesmo. Posso precisar de você. Vou entrar!
Levantei-me e caminhei silenciosamente em direção à porta. Circundei os corpos sentados e pude ver alguns homens e mulheres soltos nas cadeiras como se estivessem mortos. Pressionei meu ouvido no peito de uma mulher e deu para sentir sua respiração muito leve. O coração estava quase parado. Segurei sua mão e gelou meus dedos. Estava em coma. Olhei seu rosto mais de perto e pareceu ser a mesma mulher que tentara raptar o menino horas antes. Deixei-os e adentrei a porta semiaberta. A luz avermelhada esquentava o ambiente me deixando sufocado. Desci a escada e segui o corredor. Um som intermitente de gemido chegava de algum lugar atrás da parede. Alcancei o final do corredor e outra escada apareceu ante meus olhos. Consegui enxergar vários andares abaixo pelo vão, mas nenhum movimento. Desci vagarosamente até encontrar uma porta destrancada. Olhei para dentro e vi três homens amarrados juntos á um canto. Olharam apavorados quando me viram entrar e aproximei desamarrando-os. Coloquei o dedo nos lábios pedindo silêncio e mandei-os me acompanhar. O que fizeram por instinto. Levei-os para fora e os obriguei a correr abaixados até onde Elisa esperava. Abri a porta do veículo e empurrei-os para dentro entrando em seguida no banco do carona.
– Vamos rápido!
Exclamei ríspido.
– O que aconteceu? Quem são essas pessoas?
Elisa perguntou colocando o automóvel em movimento saindo em disparada.
– Não sei encontrei-os amarrados…
– Quem são vocês?
Perguntei olhando para trás.
O mais velho com os lábios inchados aproximou o corpo e murmurou:
– Fui raptado quando roubaram meu carro. Eles iam nos matar no domingo. Estavam se divertindo muito com nosso sofrimento…
– Quando isso aconteceu?
– O que?
– O rapto.
– Não sei… Faz algum tempo…
Os outros estavam catatônicos. Em choque.
– Vamos para o apartamento!
Ordenei me dirigindo a Elisa.
– O que aconteceu lá?
– Estão procurando vítimas para o sacrifício. Esses três seriam os “três corpos enterrados recentemente”.
– Vi dois deles saírem… Talvez estejam em busca de mais vítimas.
– Você não vai acreditar, mas eles vestiram, literalmente, dois corpos que estavam na antessala.
– Acredito. Não podem sair com seus corpos na atmosfera… São demônios.
O silêncio voltou a se infiltrar entre nós. Estava chocado com a nova realidade que havia descortinado e me lembrei das explicações sobre a relatividade que Elisa ministrara. Agora conseguia compreender tudo. Uma força nova se acendeu dentro de mim. Senti o corpo se revigorar e minha alma se iluminou enchendo o coração de paz. Estava com Deus – pensei comigo mesmo.
Nos quatro dias seguintes fizemos de tudo para trazê-los de volta ao normal. No começo foi muito difícil imaginavam que éramos demônios sempre que aparecíamos no quarto. Contorciam-se e gemiam como se estivessem sendo torturados. Aos poucos foram respondendo as orações de Elisa e se acalmaram voltando totalmente ao normal depois de três dias. Infelizmente não conseguiram nos explicar grandes coisas a não ser que o mais velho fora o último a ser levado para aquele lugar por isso ainda conseguia entender algo quando os encontrei. Ou que tinham sido sequestrados em locais diferentes. Um no carro através de um sequestro relâmpago. Outro no bar por uma prostituta. E o último quando saia da faculdade. A única coisa em comum era a família possuir túmulos no cemitério Rodolfo Komorek. Haviam pesquisados.
Nos quatro dias seguintes enquanto Elisa vigiava nossos hóspedes percorri os cemitérios diversas vezes na tentativa de encontrar os demônios e atrapalha-los em seu propósito, mas não os vi mais. Haviam desaparecido como fumaça.
Faltavam apenas vinte e oito horas para o ritual e ainda não tínhamos uma estratégia que nos permitisse vencê-los. Tivemos que liberar nossos hóspedes para irem para casa, mas explicamos o risco que estavam correndo e eles prometeram se cuidar. Voltamos a ficar sozinhos.
O domingo anterior ao ritual foi o mais penoso. Sentamos no divã e tentamos animar um ao outro.
– O que podemos fazer?
Elisa perguntou depois de terminada a primeira garrafa de vinho.
– Você não pode pedir ajuda para o mundo espiritual?
– Não preciso pedir eles estão nos observando.
– E conselho?
– O problema é nosso caso tenham algo para dizer saberemos…
Retirei a cruz de Lucano do bolso e senti seu contorno nas mãos. Olhei-a demoradamente esperando captar algo, mas não consegui nada. Era uma cruz simples de madeira envelhecida. O fio de ouro fazia um desenho misterioso sobre sua superfície saindo do centro onde as duas hastes se cruzavam retornando depois de serpentear entre curvas círculos e retas por todo corpo.
– A madeira vertical nos lembra da importância de estar em paz com o mundo espiritual e a horizontal a necessidade de estar em paz com o próximo. Somente assim encontraremos Deus.
Elisa murmurou próxima a minha orelha se curvando e tocando a mão que segurava o símbolo sagrado.
– E pensar que essa configuração já trouxe pavor para muita gente…
Repliquei divagando.
-Tudo tem um propósito.
– Não consigo sentir seu peso. Parece sólida, mas é leve como uma pena. Ao mesmo tempo é como se trouxesse dentro de si o universo inteiro. Sinto uma força poderosa saindo de seu cerne… Uma sensação de segurar o nada e o tudo ao mesmo tempo. Absolutamente incrível!
— Deixe-me segurá-la.
Entreguei-a e Elisa colocou na palma da mão. Em seguida fechou-a devagar sentindo seu contorno com devoção. Um brilho suave refletiu em seu rosto iluminando sua face e intensificando o carmim de seus lábios bem feitos. Olhou-me e enxerguei o infinito em seus olhos límpidos.
– É linda.
Murmurou novamente.
Ficamos sentados apreciando o vinho que de uma maneira inexplicável alterou seu sabor. Deixou de ser o vinho de boteco para se transformar em dom pérignon. E se fosse especialista diria que de uma safra bem antiga, talvez de mil novecentos e cinquenta e cinco… Não estaria exagerando.
–
– Não me lembro de ter adormecido.
Expressei minha surpresa ao ver o sol forte dentro da sala.
Até aquele momento estava em um mundo diferente. A imagem de alguém explicando alguma coisa surgiu em minha memória. Escrevia em um quadro verde com giz laranja. Fiquei momentaneamente petrificado. Lembrei-me da cidade que vira ao olhar pela janela. Enormes torres de cristal, ou algo parecido, arredondadas em seu feitio, estavam espalhadas dentro de belos jardins. Pelo ângulo que via percebia apenas uma pequena parte, mas dava para intuir que como em uma roda de carroça as ruas eram os aros cortando os canteiros longitudinalmente até próximo à praia de areia vermelha. No horizonte um imenso mar… Talvez até um oceano refletindo a luz da lua. Suas águas eram prateadas e etéreas.
Fiquei momentaneamente confuso. O que aconteceu às horas?… À noite?
– O que houve?
Perguntei a Elisa.
– Não se lembra?
– Ouvi a pergunta e forcei a memória em busca de respostas. Voltei a janela e o mar ou oceano, não sei bem, continuava calmo com a luz da lua refletida em suas águas transparentes. Virei a cabeça e o meus olhos se depararam com o homem explicando algo e para facilitar a compreensão riscava a lousa verde com giz laranja. O diagrama detalhado sugeria uma estratégia de ataque na hora que o ritual estivesse sendo executado. Olhei admirado com a ousadia.
– O plano será executado por quem?
Elisa me olhou surpresa.
– Por nós é claro!
Exclamou sorrindo nervosa.
Com muito esforço nos levantamos do divã e nos pusemos em curso atrás dos equipamentos necessários para a batalha.
O dia passou rápido e quando tomei consciência de mim mesmo estava sentado no Chevrolet escondido na Rua Vilaça de onde podia ver toda a movimentação lá na frente. Todo o centro da cidade estava no escuro. Poucas pessoas se aventuravam pelas ruas e as poucas que se arriscavam eram capturadas e amarradas umas as outras a espera do sacrifício. Faltavam pouco mais de trinta minutos para o confronto.
Saímos do carro e nos aproximamos sorrateiros. A roupa ritualística que usávamos, conseguida a duras penas, permitia a aproximação sem risco e usamos isso para chegar bem próximo da encruzilhada. O espelho depositado bem no centro refletia a luz das velas criando um portal onde se podia ver o inferno com todo seu pesadelo.
O sacerdote segurava a criança que se debatia em seus braços. Com o cabo da adaga acertou sua cabeça com força deixando-a inconsciente. Com voz roufenha deu algumas ordens e três homens fortes saíram de seus lugares e rapidamente arrastaram dois homens e uma mulher até o líder. Ele entregou a criança para a mulher ao lado e com a adaga degolou os prisioneiros um a um recolhendo seu sangue em taças de cristal.
Enquanto eram arrastados pelos cabelos em direção ao cemitério o anão com a pá acompanhava a comitiva sorrindo e chutando os corpos mutilados. Os rastros de sangue deixado na passagem entristecia a noite como se a própria natureza se ressentisse com a profanação.
Cinco crianças foram dispostas lado a lado próximas ao sacerdote vigiadas por senhoras de semblantes bondosos. A sexta ainda desacordada estava nos braços do xamã que sem qualquer anuncio levantou-a e começou a cantar em voz baixa o cântico secreto das trevas. Gradativamente foi aumentando o som e a cadencia contagiante embalou os ouvintes fazendo-os dançar grotescamente se agitando em movimentos primitivos. Quando o ritmo chegou ao clímax se desnudaram e se jogaram um sobre o outro se acasalando feito animais. Homem com mulher, mulher com mulher, homem com homem em uma orgia digna do Imperador Calígula em seus dias de glória.
Ficamos observando fora do circulo iluminado até o momento em que a criança foi degolada e seu sangue espargido sobre o espelho. O homem jogou a criança e seu corpo se precipitou no abismo. No mesmo instante um braço monstruoso apareceu na borda e uma cabeleira de fogo iluminou o rosto do sacerdote fazendo-o se ajoelhar.
Como um raio me lancei para frente e corri em direção ao centro do espelho. Elisa correu em direção do sacerdote e tocou seu pescoço com o aparelho que trazia nas mãos. Com o choque o corpo do homem foi lançado para trás caindo inerte no meio da rua sobre o rastro de sangue. Levantei a cruz de Lucano e sua luz iluminou como um farol em noite de tempestade. O monstro que tentava se apoiar com o corpo na borda do abismo levantou a mão para cobrir o rosto se desequilibrando e caindo desaparecendo nas profundezas abissais dos infernos.
Chutei rapidamente as velas e o espelho se condensou fechando o portal. No mesmo instante a dança acabou e todos, ainda nus, se levantaram e vieram em nossa direção com ódio nos olhos e as faces retorcidas a procura de vingança. Elisa se aproximou de mim e segurou minhas mãos. Preparamos-nos para enfrenta-los fugir não era uma opção.
Quando o circulo se fechou uma labareda brilhante surgiu no céu escuro e iluminou tudo ao redor. Aos poucos os corpos foram caindo um após outro. Olhei para cima espantado e consegui ver por trás da luminosidade anjos com tochas em uma mão e espadas de fogo na outra circulando a nossa volta como pássaros mitológicos.
Quando olhei para o chão não havia mais demônios apenas pessoas comuns adoradores do mal acordando de sua possessão demoníaca.
As luzes dos postes e das lojas em redor se acenderam e ouvi a sirene da polícia se aproximando. Corremos até o carro entramos e saímos dalí rapidamente voltando ao apartamento.
Tudo acontecera rapidamente. Tínhamos ganho mais cem anos para a humanidade voltar á luz. Mais uma chance…
O cansaço chegou de repente como se esperasse apenas o desenrolar do evento para se abater sobre meu corpo. Elisa estava alegre e me colocou na cama beijando meu rosto com carinho. Antes de fechar os olhos pesados de sono murmurei:
– Vamos pintar a batalha amanhã.
Ela sorriu assertiva. Fechei os olhos e dormi profundamente.
Acordei na manhã seguinte com o sol jogando sua luz e calor sobre meu corpo descansado. Levantei-me e fui á cozinha. Elisa não estava lá. Vasculhei a casa a sua procura, mas não a encontrei em lugar algum. Sentei-me decepcionado no banco frente ao cavalete. Grudado em uma tela em branco o bilhete em papel azul acenou para mim.
Querido! O texto iniciava assim. A roda voltou a girar e minha busca me fez encontrá-lo. Fizemos um bom trabalho e a humanidade terá uma nova chance de se redimir. Infelizmente não poderei ajudá-lo na confecção dos quadros aos quais a humanidade expressará seu agradecimento pelo serviço prestado transformando-os em ícones e valorizando-os nas alturas. Mesmo sem ter consciência disso. Estarei observando e torcendo pelo seu sucesso. Encontrar-nos-emos em um futuro não muito distante, mas não tente me fazer lembrar da nossa aventura. Na verdade você encontrará apenas uma parte de mim. Foi um grande prazer.
No rodapé dois símbolos estavam registrados como assinatura: Um coração e um pombo… Amor e paz imaginei.
Reli diversas vezes o bilhete tentando entender seu significado. No final estou novamente sozinho. Pensei zangado. Procurei no bolso a cruz e segurei-a com força. Aos poucos a paz voltou a tomar conta de minha alma e pensei no futuro com esperança.
Olhei a tela em branco e minha imaginação se encheu de imagens como se alguém em algum lugar me enviasse um recado. Coloquei tinta na paleta rapidamente e comecei a pintar…
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