RAÍZES, um conto de “CONTEXTURAS” (contos de Luísa Fresta e quadros de Armanda Alves)

Quadro de Armanda Alves

Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).

 

RAÍZES

Falava umbundu com a sua Mãe e foi com essa língua que se fez gente. Depois, já tardiamente, o português entrou-lhe nas obrigações. O menino era brilhante: em pouco tempo recuperou os anos perdidos.

Outros meninos traziam merenda e ele fazia-lhes os deveres. Era um negócio justo: trabalho por comida, serviços por produtos.

Um dia veio estudar para o continente e formou-se, liderante e solidário. Com um corte de fazenda oferecido esbateu a imagem de menino pobre. Na verdade era um menino pobre com fato, pobre de facto, cheio de nobreza.

De regresso à terra, descobriu-se doutor no olhar dos outros. Na súplica dos doentes. A miséria estava do lado de lá e a riqueza pendente de um gesto seu. Pelo seu consultório passaram gentes iguais a si: não podiam pagar senão em géneros. Eram porcos, galinhas e obras-primas de artesanato. Naperons bordados, cestas de vime, esculturas em madeiras nobres. Às vezes vinha um petisco numa panela que depois “a mulher” vinha buscar. Dinheiro era coisa que não se via. E o doutor fazia questão de o manter longe de si.

– Raízes – dizia ele – O que me move são estas raízes comuns. Nada mais.

O doutor tinha fama de ser excêntrico: quando o homem mais rico da vila veio minado pela espondilose, não conseguiu pagar-lhe.

– Raízes – repetia ele com o olhar absorto. – Raízes, meu caro. Lembra-se deste corte de fazenda? O homem calvo não se lembrava, mas o seu olhar sim. Balbuciou qualquer coisa para o filho e, no dia seguinte o médico tinha, na sua parca mesa, um cheque destinado à construção de um centro médico.

Quando os anos se apossaram da sua lucidez, ele dizia a todos os que o visitavam:

– Raízes – mas sempre em umbundu, língua da terra, sua mãe também.

 

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*