Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).
RAÍZES
Falava umbundu com a sua Mãe e foi com essa língua que se fez gente. Depois, já tardiamente, o português entrou-lhe nas obrigações. O menino era brilhante: em pouco tempo recuperou os anos perdidos.
Outros meninos traziam merenda e ele fazia-lhes os deveres. Era um negócio justo: trabalho por comida, serviços por produtos.
Um dia veio estudar para o continente e formou-se, liderante e solidário. Com um corte de fazenda oferecido esbateu a imagem de menino pobre. Na verdade era um menino pobre com fato, pobre de facto, cheio de nobreza.
De regresso à terra, descobriu-se doutor no olhar dos outros. Na súplica dos doentes. A miséria estava do lado de lá e a riqueza pendente de um gesto seu. Pelo seu consultório passaram gentes iguais a si: não podiam pagar senão em géneros. Eram porcos, galinhas e obras-primas de artesanato. Naperons bordados, cestas de vime, esculturas em madeiras nobres. Às vezes vinha um petisco numa panela que depois “a mulher” vinha buscar. Dinheiro era coisa que não se via. E o doutor fazia questão de o manter longe de si.
– Raízes – dizia ele – O que me move são estas raízes comuns. Nada mais.
O doutor tinha fama de ser excêntrico: quando o homem mais rico da vila veio minado pela espondilose, não conseguiu pagar-lhe.
– Raízes – repetia ele com o olhar absorto. – Raízes, meu caro. Lembra-se deste corte de fazenda? O homem calvo não se lembrava, mas o seu olhar sim. Balbuciou qualquer coisa para o filho e, no dia seguinte o médico tinha, na sua parca mesa, um cheque destinado à construção de um centro médico.
Quando os anos se apossaram da sua lucidez, ele dizia a todos os que o visitavam:
– Raízes – mas sempre em umbundu, língua da terra, sua mãe também.
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