REBENTOS
O velho estava sentado à soleira da porta, com os olhos vidrados no mar. Olhos que já não viam senão imagens remotas da juventude, nos anos longínquos da sua comprida existência. Costumava contar histórias aos miúdos da ilha de Luanda, que passavam ali só para ouvi-lo quando voltavam da escola. Diziam que o mais-velho era feiticeiro, só porque conseguia que as crianças ficassem sossegadas e não arredassem pé dali enquanto não adormecesse. Ele ia desfiando episódios antigos, às vezes inventava, outras não, mas era quase sempre mais credível quando inventava.
Uma vez tinha-se deixado enfeitiçar por uma prostituta chamada Mingota. Era uma sereia pequenota, suave e brilhante, que usava uma carapinha solta e muito redonda. Mingota não era o seu verdadeiro nome, dizia-se que nada nela era verdadeiro. Mas era o que tinha de mais real. O velho Chico amava-a desmedidamente e oferecia-lhe búzios e conchas que apanhava na praia. Certo dia atreveu-se a perguntar-lhe:
– Gostas de mim?
Mingota demorou a encontrar as palavras, mas mostrou-lhe uma dentadura branca em forma de sorriso curvo.
– Quando estou contigo amo-te intensamente – disparou.
Chico nunca mais lhe fez a mesma pergunta, sempre acreditando na brancura daqueles dentes certos. Mingota visitava-o todos os dias, procurava-o nos intervalos das trevas em que a tinham mergulhada. Depois, um dia, deixou de aparecer porque o mar a tinha engolido.
Por isso, quando Chico se sentava à soleira da sua porta gasta, esfregando os pés gretados na areia, ouvia o marulho e lembrava Mingota. Nessa altura não falava com ninguém, só mesmo com o mar.
Um miúdo mais atrevido perguntou:
– Avô Chico, assim estás a ouvir o quê?
– Cala-te – dizia, incomodado – Estou a ouvir os “rebentos”.
– Rebentos, rebentos de quê?
– Ora, rebentos de beijos.
Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).
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