REBENTOS, um conto de “CONTEXTURAS” (contos de Luísa Fresta e quadros de Armanda Alves)

REBENTOS

O velho estava sentado à soleira da porta, com os olhos vidrados no mar. Olhos que já não viam senão imagens remotas da juventude, nos anos longínquos da sua comprida existência. Costumava contar histórias aos miúdos da ilha de Luanda, que passavam ali só para ouvi-lo quando voltavam da escola. Diziam que o mais-velho era feiticeiro, só porque conseguia que as crianças ficassem sossegadas e não arredassem pé dali enquanto não adormecesse. Ele ia desfiando episódios antigos, às vezes inventava, outras não, mas era quase sempre mais credível quando inventava.

Uma vez tinha-se deixado enfeitiçar por uma prostituta chamada Mingota. Era uma sereia pequenota, suave e brilhante, que usava uma carapinha solta e muito redonda. Mingota não era o seu verdadeiro nome, dizia-se que nada nela era verdadeiro. Mas era o que tinha de mais real. O velho Chico amava-a desmedidamente e oferecia-lhe búzios e conchas que apanhava na praia. Certo dia atreveu-se a perguntar-lhe:

– Gostas de mim?

Mingota demorou a encontrar as palavras, mas mostrou-lhe uma dentadura branca em forma de sorriso curvo.

– Quando estou contigo amo-te intensamente – disparou.

Chico nunca mais lhe fez a mesma pergunta, sempre acreditando na brancura daqueles dentes certos. Mingota visitava-o todos os dias, procurava-o nos intervalos das trevas em que a tinham mergulhada. Depois, um dia, deixou de aparecer porque o mar a tinha engolido.

Por isso, quando Chico se sentava à soleira da sua porta gasta, esfregando os pés gretados na areia, ouvia o marulho e lembrava Mingota. Nessa altura não falava com ninguém, só mesmo com o mar.

Um miúdo mais atrevido perguntou:

– Avô Chico, assim estás a ouvir o quê?

– Cala-te – dizia, incomodado – Estou a ouvir os “rebentos”.

– Rebentos, rebentos de quê?

– Ora, rebentos de beijos.

 

 

Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).

 

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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