Rebobine antes de amar – Filipi Gradim
O valor cultural da Fita Cassete
Por Filipi Gradim – 30 de março de 2021
Desconheço período mais emblemático do que a década de 80. A geração que hoje se encontra entre os 40 e 50 anos dificilmente se esquece dos acontecimentos que marcaram a época, tanto positiva quanto negativamente. Em retrospectiva, podemos ver que, no plano econômico, os anos 80 sofreram seríssimas complicações, com o agravamento de déficits fiscais e o aumento das taxas de juros, o que resultou no superendividamento dos países periféricos e, consequentemente, na radicalização da pobreza e do desemprego. No Brasil, por exemplo, fomos sufocados com a hiperinflação do governo Sarney, que tentou recuperar o rombo dos cofres com congelamento de salários, enxugamento da máquina pública e demissões em massa.
No plano político, as guerras internacionais prolongavam velhos conflitos territoriais. A guerra Afegã-Soviética, a guerra das Malvinas, a guerra do Irã-Iraque, a guerra do Líbano e os diversos bombardeios insanos efetuados pelos Estados Unidos na luta contra o comunismo. A Guerra Fria deu um “basta” provisório no binarismo político (capitalismo x comunismo); ou – o que parece mais apropriado – remodelou defesas e ataques com a queda do muro de Berlim.
No plano científico, a medicina esbarrou no desafio de ter que admitir a presença de um novo vírus de alta letalidade, que foi o HIV, e ter que controlar a disseminação da AIDS. Quem acompanhou o sensacionalismo dos telejornais, apesar de todo o tabu envolvido com o tema, pôde saber ao menos que o vírus não se restringia a um grupo específico, como os homossexuais e os usuários de drogas injetáveis, mas que vitimava desde crianças a casais heteronormativos.
Todavia, é no plano tecnológico e cultural que a década de 80 mais causa fascínio. É evidente que as atenções estavam voltadas para a aparição do cometa Halley, para as missões espaciais do ônibus Columbia e Challenger (que assustadoramente explodiu no ar após a decolagem), para a descoberta do buraco na camada de ozônio ou para o lançamento do computador Macintosh, da Apple. Esses episódios eram imperdíveis. Como também causou alarde o surgimento dos telefones com teclas, dos relógios com calculadora, dos microsystems “boombox”, dos videocassetes, das câmeras de vídeo e dos incríveis videogames. Ave, Atari!
Pode-se definir a década de 80 como um oásis repleto de sonhos de consumo ligados ao pós-industrialismo. Diante dos itens citados, havia uma “princesinha” da tecnologia analógica, que influenciou e determinou durante quase quarenta anos o consumo e o comportamento, que foi a Fita Cassete. O que me motivou a escrita do artigo foi mais do que um revisionismo, uma nostalgia da época. Na verdade, há três semanas atrás, soube da morte de Lou Ottens (1926-2021), o holandês inventor desse pequeno “jardim das delícias” que foi a fita cassete. Para qualquer amante de música, permanece o sentimento de gratidão a esse gênio da engenharia.
Aproveitando a deixa. Em se tratando de musicofilia (paixão inexplicável pela arte das musas), pagamos com contentamento uma mensalidade para disfrutarmos dos benefícios oferecidos pelos streamings Spotfy ou Deezer. Se há coisa mais prazerosa nesse entretenimento não é seu preço acessível, mas o fato de que o suporte, o veículo musicante, é portátil; ou seja, circulável, de modo a nos acompanhar para onde quer que estejamos. No entanto, essa facilidade do mundo pós-moderno e pós-industrial, teve sua origem na ideia de Lou Ottens.
O holandês é o avô dos streamings. A empreitada do patriarca da música portátil se iniciou com a gênese da fita cassete, em 1962. Desde cedo, mostrando-se curioso por tecnologia, Lou Ottens criou, na adolescência, um rádio que o permitia ouvir transmissões secretas da Radio Oranje, em meio à Segunda Guerra. Ingressou depois na Escola Politécnica de Delft para cursar Engenharia. Enquanto estudava, trabalhava na Philips, empresa na qual desenvolveu parte de seus projetos. Principalmente depois, quando, na década de 60, assumiu o departamento de Desenvolvimento de Produto, na cidade de Hasselt. Graças a Lou Ottens, EL 3585, o primeiro gravador da Philips veio à lume. A novidade do aparelho simbolizava a marca do engenheiro: a necessidade da portabilidade do aparelho, de modo a dinamizá-lo com o ritmo da acelerada vida moderna. O consumismo em voga na época compreendeu tão bem o argumento de Ottens, que a Philips foi bem-sucedida, alcançando a cifra de 1 milhão de peças vendidas.
Embora a fita cassete (K-7) fosse uma novidade na tecnologia, revolucionando a prática da gravação sonora, o pioneirismo das fitas magnéticas não se reservou à ideia de Ottens nem ao monopólio da Philips. Foi preciso, antes, um apuro dos materiais, uma evolução da pesquisa de engenharia e da demanda do consumo. O austríaco Fritz Pfleumer criou, em 1928, a primeira fita magnética, porém feita de papel. Antes disso, a empresa I.G Farben (depois designada BASF) inventou o composto de ferro carbonilo “constituído por nano esferas de ferro”. A empresa alemã AEG, ciente da criação de Pfleumer, contratou-o e associou-o à equipe de engenheiros eletrotécnicos e químicos da BASF e, juntos, trabalharam para “desenvolver a primeira fórmula de fita magnética em ferro carbonilo baseada numa fita de acetato de celulose”.[1]
Depois de várias testagens, eis que, em 1935, a AEG apresentou o protótipo de gravador para fitas magnéticas de ferro carbonilo para produção. Chamou-se K-1. Com a demanda para tornar o gravador ainda mais potente, tanto no sistema interno de cabeças, de válvulas e amplificadores, quanto em relação à estrutura da fita magnética (velocidade, metragem), criaram-se outros modelos (K-2, K-3, K-4). Além do mais, os gravadores poderiam ser destinados não só ao uso de profissionais da radiocomunicação, como também para o uso doméstico.
Assim, as fitas magnéticas, criadas por Pfleumer, antes produzidas com rolos abertos, passaram a receber um cartucho, o Stereo 8, a fim de protegê-las e torná-las manuseáveis. Ocorreu, então, o que Paulo Roberto Elias chamou de “encarceramento da fita” permitindo “o isolamento do material magnético” e o aumento da longevidade de seu uso, afastando-a de agentes degradantes como a poeira, o fungo, o mofo e a oleosidade digital.[2] No entanto, adquirir um gravador de fita magnética era artigo de luxo. Apenas nos anos 60 se tornou consumível pela classe média, deixando de ser um instrumento de trabalho datilográfico para entreter famílias.
Graças a Lou Ottens e seu trabalho na Philips é que pudemos consumir essa tecnologia. O aparelho Philips Mini-K-7 circulou que nem água a partir de 1962, quando a fita K-7 surgiu. Conforme ocorrido com os outros gravadores, as fitas magnéticas acompanharam a evolução das tecnologias de gravação de som. Já não eram mais feitas com o ferro carbonilo da época da parceria Pfleumer-BASF (pois queimavam no contato com o ar); mas, sim, feitas com metal tape, que na verdade eram ligas de metal que ofereciam mais leveza e resistência ao material.
Então, a Philips, adiantou-se na corrida tecnológica e, pelas mãos do hábil engenheiro holandês, nos apresentou uma solução que revolucionou os costumes e modelou os hábitos das cinco décadas seguintes. Criou não só o aparelho portátil de gravação e reprodução, bem como modernizou a fita magnética, melhorando-a ergonomica e esteticamente. Daí o K-1 evoluiu para o K-7, um suporte gravado que, segundo Ottens, deveria caber no bolso da jaqueta.
O mercado fonográfico foi o que melhor usufruiu da “caixinha de plástico” esculpida por Ottens. A partir dela foi possível gravar, reproduzir, editar e, sobretudo, compartilhar música pela primeira vez na história. Sendo cria dos anos 80 – e aí retomo o argumento inicial do artigo – experimentei uma das principais modificações na apreciação da música, a saber, a de poder organizar seu próprio repertório, o que hoje a linguagem comercial chama de playlist.
Quem viveu sabe o que era aguardar nas rádios (Cidade, Fluminense, Transamérica, RPC, 98, Manchete) tocar a música de seus artistas preferidos. Quantas vezes perdi manhãs e tardes na expectativa de apertar o REC, aquele botão vermelho que deixava em alerta para qualquer sinal de que quem vinha era a “sua música”, justo aquela que há dias perseguia para compor sua lista dos desejos. Às vezes me distraia e deixava a música passar ou então ela nunca tocava.
O certo é que a intenção dos amantes da fita cassete era única: emancipar-se do seletor do rádio, já que a difusão da música dependia mais de “jabás” e lobbies do que propriamente de interesse na formação do gosto dos ouvintes. Ouvia-se de tudo nas rádios, mas nem sempre na ordem, no tempo e da forma como se gostava. Para ouvir o que se gostava, era preciso peneirar; e, para guardar o que passou pela peneira, só com a ajuda da gravação em K-7.
Com diversos artistas agi assim: Legião Urbana, Titãs, Plebe Rude, Cazuza, U2, Simple Minds, Tears for Fears, Faith No More, Pearl Jam, Living Colour, Nirvana, Madonna e Michael. Conheci-os através do rádio e, explorando esse meio, gravei dezenas de fitas, separadas por gênero ou artista. Fazia plantão na frente do gravador, sempre torcendo para que nenhum locutor engraçadinho falasse imprevistamente em cima de Redemption Song do rei Marley. Cumpria disciplinadamente o ritual: verificava se a fita não estava para acabar e cortar a música no meio, escrevia o nome do artista no adesivo da caixinha para não confundir com outras, etc.
Aguardar a música tocar, gravá-la, montar sequência personalizada, em sua própria casa, como se o espaço domiciliar pudesse reproduzir minimamente senão o estúdio de gravação, mas a rádio e a função do dj. A fita cassete trouxe-nos esse direito de amar a música informalmente, sem ritualizações, também de nos fazer menos passivos, ao ponto de permitir que selecionemos as canções que queremos, nos apoderando da experiência evanescente da música. Transferimos a música, tão fora do domínio manual, para dentro de um objeto manuseante. Encaixotamo-la e tornamo-la posse, um bicho de estimação magnético.
A fita cassete, além disso, assanhou o desejo de misturar a vida social com a música que ouvimos. Transformou o ato doméstico de escutar música em um ato público, na medida em que o ouvinte é capaz de percorrer diversos cenários da cidade acoplado ao aparelho reprodutor de sua experiência. Tal foi o caso do walkman, invençãojaponesa de 1979 pela empresa Sony a pedido de Akio Morita, um dos sócios da empresa. Ele solicitou a Nobutoshi Kihara, o coordenador do setor de áudio, que criasse um gravador-reprodutor portátil a fim de que pudesse ouvir ópera durante a rotina estressante de trabalho. Embora Morita tivesse odiado o nome walkman, foi assim que se tornou célebre e definiu o modo particular de uso do K-7.
Ouvir música no walkman significava ouvir K-7, ou seja, a força do protótipo desenhado por Ottens foi tão decisiva e influente que criou uma demanda diferenciada na tecnologia, na economia e na cultura dos aparelhos gravadores. A existência de um condicionou a existência do outro. Se, antes, era o contrário, se o gravador formatava a fita; com a invenção de Ottens, se fez necessária uma complementação que os excelentes japoneses nos ofereceram.
Logo o resultado positivo dessa parceria floresceu. Nos anos 80, era comum assistir na vida e na ficção pessoas experimentando a música unindo essas duas caixas, a metálica e a de plástico. Em clipes, novelas e filmes abundavam cenas com jovens e adultos ouvindo walkman, disfrutando da música ao mesmo tempo que da possibilidade de fazê-lo em movimento, caminhando, correndo, exercitando-se ou trabalhando, como no caso de Akio Morita.
Por mais que ouvíssemos as fitas no aparelho de som, no conforto de casa, era ainda mais prazeroso ouvi-las no walkman, razão que as validava em outro nível de experiência estética, pelo fato de “socializarem” junto com o ouvinte. Na experiência do walkman, os artistas escolhidos a dedo na rádio formavam planos de fundo de espaços vividos; espaços esses que o ouvinte escolheria, fora de casa, para disfrutar sozinho da quietude ou da sensualidade da música. O ouvinte orquestraria uma trilha sonora, a bel prazer, em cada lugar que estivesse.
O ouvinte circula; é o walkman, o portador de emoções musicais; que, no transitar de um ponto ao outro da cidade, sabe que, se a fita cassete embolar, convém recorrer ao artifício da caneta Bic, atento à regra número 1 dos musicófilos: rebobinar antes de amar.
[1] PIEDADE, Moises. A história da fita magnética de substrato flexível. Fonte: museufaraday.ist.utl.pt
[2] ELIAS, Paulo Roberto. O nascimento, a vida e a morte da fita cassete (2018). Blog: outrolado.com.br
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