Por Beth Brait Alvim
Ando prestando atenção em detalhes que nem imaginava existirem. Hoje convivo com eles, para o bem e para o mal (eu que não abro mão de me auto denominar não maniqueísta, falando do bem e do mal. Ainda sou pega e por mim, a essa altura!)
Um certo dia de claustro nesta temporada no inferno creio que rompi o limite do suportável. Noventa dias encerrada num flat no centro de São Paulo, 32 m2, que está muito perto do meu último emprego, no Sesc Bom Retiro, o que quer dizer, ao lado da comunidade da Craco. Surpreendi-me, desta feita, repentinamente, sob uma desconhecida fragilidade: fraqueza, tremores, falta de ar, um profundo desespero por me arrastar e voltar a me arrastar das paredes da minúscula sala até a varanda, também minúscula.
O lugar parecia pulsar para dentro de si me aspirando para o seu buraco negro de concreto, disfarçado de látex bege já todo falho de tantos anos e tanta gente transitando e carimbando suas digitais nas portas e paredes, infestando o cubículo com pedaços de vida.
A esta altura, nonagésimo dia da pandemia, estar confinada no 12º andar em um lugar que permite ver apenas tetos, telhados e uma nesga da linha do trem e da favela ao lado, aqui e ali coroados por imponentes prédios e pelo teatro da maior seguradora do país, me sufocou até que eu pedisse clemência, até sentir meus ouvidos zunirem feito cigarras, até a claustrofobia me levar à ânsia, aos engulhos.
Respirei fundo e lentamente e, com alguma lucidez escrevi uma mensagem: vou fazer um poema, preciso fazer um poema.
Há anos defendo, e tenho essa convicção, de que arte é arte, e não é arte para isso ou para aquilo; que arte não tem sequer função social. Arte é o ramo da cultura mais sublime, é o único campo da atividade humana em que a liberdade gera leis para si, gera uma ordenação e uma ética para si. A imaginação contém todas as qualidades da atividade humana, da comunicação à valoração ética, e como um toque de alquimia, faz nascer dessa reunião uma qualidade que contém todas as outras, mas é diferente delas: a arte, único foro de liberdade irrestrita.
Naquela ocasião, mergulhei, porém, na instrumentalização da arte: precisava sobreviver, não me deixar entropizar, não me entregar.
Esse poema nasceu em uma mensagem que enviei ao Celso de Alencar, meu amigo, enorme poeta, dos maiores vivos, meu salvador de muitos anos, que me faz publicar livros. Eu dizia a ele que precisava escrever…
Celso vê poema em várias das minhas mensagens, as defende como poema, põe título e publica. Daí, eu gosto.
Tanto, que em A febre e a mariposa, Patuá, 2018, as Cartas a Gunther Krieger foram e-mails enviados ao Celso.
Esse poema acabou por ser publicado na Revista E do Sesc, e isso me acarinhou. Não, não é verdade, o que me acarinhou, como sempre, foi o poeta Celso de Alencar e a poesia. Só sei ser poeta, há algum tempo, e preciso só ser poeta. E o poeta sabe disto.
Vale lembrar que Celso foi o idealizador e organizador do Mulheres de São José, uma bela antologia de 1991, Scortecci Ed. em que nos eternizamos juntas: Dyrce Araújo, Josie, Juracy Ribeiro, Mythes Mazziero e eu.
Então, termino assim, deixando aqui para meus queridos e insubstituíveis amigos esse poema que me salvou do vírus e deflagrou outros e outros poemas, que me salvam de um outro vírus muito mais letal que o da COVID 19, o vírus da tristeza e da indignação que nos atacam violentamente em todos os níveis de nossa atual vida brasileira.
NÃO, NÃO QUERO MAIS
O peito salta do alto num sopro de vento
e a queda é leve
como se voar fosse o último desejo
como se morrer fosse apenas concordar com a ideia de que se está morrendo
após 40 dias nesse deserto.
Nada bloqueia essa taquicardia
esse zumbido de elefante asmático
essa falta de oceano.
Perambulam tontas todas as manhãs e tardes as minhas retinas viciadas
no mesmo céu nos idênticos edifícios no mesmo trem.
Já conheço suas labaredas elétricas que calcam o passado e deslizam no delírio atrás
de marias fumaças.
Já conto todas as tábuas e restos e chapas dos casebres aos meus pés.
Já acredito que ouço os tambores do terreiro em frente à favela todas as madrugadas.
Já não sonho, deliro.
Sem saída
aperto mais e mais os seios contra a parede minúscula
do quarto minúsculo
da sala que não existe
da varanda onde meu corpo não cabe
meu coração não cabe
minha cabeça não ventila
e meu peito não respira
ah
essa falta de ar…
Não quero mais ser forte
lavar as mãos sofregamente
amparar os desvalidos
esperar esperar esperar rezar meditar consolar
arder de febre por falta de abraço
nem acreditar em uma outra humanidade, um novo Humano após esse dilúvio seco, sorrateiro e voraz.
Não, não quero mais.
Faça um comentário