Ao fechar o livro “Asfixia; Capitalismo Financeiro e a insurreição da linguagem” do filósofo italiano Franco Berardi, um silêncio constrangedor me sufoca. É sobre o direito à respiração que o livro trata. Mas eu não pretendo fazer resenha. Comentário sobre a obra. O que escrevo é sobre o que o livro movimenta em mim. Não há um sujeito aqui. Um leitor (sujeito) e um livro (objeto). O que escrevo é o entre. E essa relação, esse agenciamento de duas forças que se encontram e que daí alguma coisa resulta. Não é uma premissa de verdade que isso tenha que acontecer sempre. Acontece. Quando acontece.
Dividido em dois tempos. Insurreição e Respiração. O primeira em 2011 cobre os movimentos de uma revolta mundial. Occupy. Nas palavras do autor; “uma rebelião generalizada contra a austeridade abriu uma fresta para um possível processo de liberação contra a ditadura financeirista.” Respiração em 2018, também nas palavras do autor: “ Quando as forças da escuridão obscureceram o horizonte do mundo, e quando a ditadura financeirista foi reforçada pelo ressurgimento do fascismo.”
O segundo como resposta ao primeiro texto. Mas não me atrevo a entrar em questões mais problemáticas pelo fato de ainda não dar conta de forma responsável dos conceitos e dados que se encontram no livro. Humildade sempre é bom. Mas como dizia. Sobre o silêncio que me “abateu”…
O que me chamou atenção, confesso, foi os subtítulos dos dois textos. De alguma forma eles entram em sintonia, com o que eu estudo e pesquiso. A linguagem como mecanismo de cura, clínica, liberdade. Algum leitor apressado já deve ter esticado um lado da boca em um gostoso sorriso irônico. “a ironia (no entanto) pode ser uma ferramenta linguística para racionalizar o comportamento cínico”. Retiro trechos do livro pra me “apoiarem” nesse empreendimento textual. Não vou citar página e essas coisas. Isso não é um texto acadêmico e nem tem intenções disso. Prefiro entender os enxertos do autor no meu texto como estratégias de escrita. Poderia achar um nome mais interessante, mas ficamos assim. Voltando, prefiro a ironia do que o cinismo, muito mais perigoso em nossos dias. Lembrando que temos duas formas de entender o cinismo. Zynismo e kynismo de acordo com os autores que tratam do tema. Mas voltando.
Subtítulos: “poéticas e finanças”, “Caos e poesia”.
A linguagem está presa. Enquadrada. Confinada. De alguma forma sempre soubemos disso. Mais ainda quem trabalha com a fala, a escrita. Quem tem de fazer da palavra quase um produto pra sobreviver.
Sabemos dos limites, das imposições e dos silêncios (muitas vezes forçados) que somos obrigados a respeitar. Regra, gramática, convenção, política, Direito, justiça, verdade. Sei também de certa edipianização social e dos axiomas produzidos pelo capital para garantir que a palavra – falada ou escrita – permaneça dentro de um limite favorável às verdades impostas por certo grupo que detém a força política e econômica do mundo. O capital atravessa estados, países, homens…tudo.
No entanto quando Franco Berardi sugere a poesia como forma de resistir ao inferno… meus olhos brilharam. Sentimentalismo, inocência, ingenuidade?
Mas o conceito que Berardi dá à poesia é uma tanto diferente, mais abrangente, mais potente:
“Chamamos “poesia” a concatenação semiótica que excede a esfera das trocas e correspondência codificada do significante e do significado; a concatenação semiótica que cria novas rotas de significação e abre caminho para reativar o elo entre sensibilidade e tempo, já que sensibilidade é o que possibilita a singularidade da enunciação e a singularidade da compreensão de um enunciado não codificado.”
O filósofo italiano deixa claro como entende a linguagem atual, “seduzida”, e cooptada pelos meios informáticos. Vítima de um interesse financeiro e de um uso utilitarista para responder mais prontamente às exigências de uma sociedade que teria como base o algoritmo.
Diz o autor que a poesia teria (e eu concordo) certa potência para “alterar a ordem de expectativas (e que isso) é uma das mais importantes transformações sociais que um movimento é capaz de produzir. (e que) essa mudança implica não só transformação cultural, mas também modificação na sensibilidade, em quão aberto o organismo está para o mundo e para o outro.”
Há o ódio de um lado, com fascismo e arma, guerra e dinheiro. As frustrações de uma financeirização que não cumpre a promessa faz com que as pessoas se voltem para questões de nacionalidade, de raça, de gênero. Buscam em atitudes não sensíveis ao outro a resposta para a frustração. Paranoia absoluta. No inferno financeirizado e precarizado da sociedade, voltam-se para espaços de pertencimentos quase infantis, minha terra, meu país, minha cor, minha religião, minha luta, elegendo tudo que não é seu reflexo como inimigo. A mídia ajuda nesse processo. A linguagem é neurotizada nestes discursos. A língua reflete e traduz toda a paranoia e a precariedade. Há um condicionamento para que ela não seja capaz de liberar-se. O algoritmo à matematiza para melhor responder ao prazer financeiro, a paranoia a reduz a uma reação pobre e infeliz que imbeciliza qualquer possibilidade de um pensamento pela multiplicidade.
E então temos a poesia. “A poesia é o excesso da linguagem: ela é aquilo que a linguagem não consegue reduzir a informação e que não é negociável, mas que dá lugar a um novo território comum de entendimento, de sentido compartilhado – à criação de um mundo novo.”
A poesia para além do cinismo axiomático capitalístico, a linguagem como potencia, na porta do caos, na boca do inferno, se dobrando e se desdobrando furiosa em verbo e vida. Agarrada e pulsante nas costas do monstro do fascismo, resistindo e enfrentado a paranoia e a besteira. Silenciando o algoritmo e calando a repetição incessante do mesmo. A poesia recusando o anel de casamento nefasto do finaceirismo e convidando para uma outra coisa. Um outro lugar que é aqui mesmo.
Penso no Chico Cezar e na música “Estado de poesia”:
“Para viver em estado de poesia
Me entranharia nestes sertões de você
Para deixar a vida que eu vivia
De cigania antes de te conhecer
De enganos livres que eu tinha porque queria
Por não saber que mais dia menos dia
Eu todo me encantaria pelo todo do teu ser”
Convidar o ser humano para um “estado de poesia”, convidar a um procedimento linguístico que abra a carapaça paranoica da linguagem para espaços de sensibilidade e liberdade. Entranhar-se nos sertões de uma nova experiência com a vida, abandonar o dogmatismo, entender que nosso cinismo faz com que aceitemos nossa própria precariedade social e psicológica.
Inventar uma posição de resistência que tenha o poder de nos fazer respirar. Caso contrário, assim como George Floyd e Eric Garner só conseguiremos dizer:
“Não consigo respirar”.
BERARDI, Franco. Asfixia: Capitalismo Financeiro e a Insurreição da Linguagem.São Paulo.Ubu Editora 2020.
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