Sobre o nó que silencia e o grito que humaniza

Ricardo-Ferrari-Série-‘Lembranças-da-minha-infância’

Sobre o nó que silencia e o grito que humaniza

Por Eliane de Fátima Camargo

Escrever neste momento pandêmico é um misto de alegria e desafio. Alegria porque escrever me aquece o coração e tira o nó que tenho na garganta. Nó apertado de tantos silenciamentos que a vida me proporcionou. E, desafio porque para além de escrever livremente, tenho uma pesquisa acadêmica para fazer que demanda critérios mais rigorosos. Escrevo enquanto o mundo acelerado pelo capitalismo se vê obrigado a diminuir os passos, a quase parar, e, muitos nesse momento choram os seus mortos. A incerteza do amanhã me parece ainda mais clara. Tenho esperança sim, mas também tenho medo. Medo de não ver mais as pessoas que amo, medo de que as minhas últimas lembranças tenham sido do que não falei.

Lecionando de casa para meus estudantes do campo, mandando atividades impressas em um contato tecnicista, as desigualdades gritam aos meus ouvidos é impossível não ouvir. Ouço e choro. Enquanto escrevo e me pego cheia de dúvidas, alguém me puxa a blusa e me diz: “mãe, mãe…olha pra mim!”. É minha filha, de três anos. Na sua inocência de criança ainda não entende que o mundo gira em torno de prazos. Prazos, que hoje deixaram de fazer sentido. Eu a pego no colo e continuo escrevendo…Logo o irmão chega e a chama para brincar, os dois falam alto, quase aos gritos, riem e brincam. Penso algumas vezes em dizer para fazerem silêncio, mas não me atrevo, não posso silenciar a criança deles. A cena me faz lembrar de quando era criança e quantas vezes eu e meus irmãos ficamos em silêncio em nosso quarto, chorando enquanto nosso pai batia em nossa mãe. Triste realidade, que não foi só minha, mas faz parte do cotidiano de muitas crianças e mulheres. A violência é algo que nos toma profundamente, a ponto de tornar-se um nó na garganta, então o silêncio se instaura. As crianças não deveriam ser silenciadas, as mulheres não deveriam ser silenciadas, aliás ninguém deveria!

É sobre esse silenciar que escrevo hoje, não só meu, mas de tantas pessoas que são vítimas de opressões e violências, explícitas ou não. O assunto que tomou as redes sociais durante a semana foi o da criança que foi violentada durante anos pelo seu tio, e que foi exposta de maneira cruel por adultos de “bem”. Sofreu em silêncio por tanto tempo e ainda sofre. Mas não vou me ater a falar desse caso em particular, porque muito já foi dito e a minha intenção não é expor ainda mais ela. O que queria realmente era abraçá-la e poder tirar toda a dor que sentiu.

O assunto tomou as redes sociais e me levou a pensar sobre muitas coisas, mas quero falar de uma postagem específica, que dizia o seguinte:“roubaram a sua inocência”. Devo dizer que essa frase por mais “cheia de boas intenções” que pareça é um exemplo do quanto os discursos sempre condenam a vítima. Ela é uma criança que foi vítima de um adulto cruel, que foi violentada, silenciada, mas não, a sua inocência de criança ninguém pode lhe roubar.

Quando penso em inocência, um dos textos mais lindos que li foi: “O pequeno príncipe”, o qual tem uma passagem  que me toca profundamente, por isso faço questão de citá-la:

As pessoas grandes adoram os números. Quando você fala com elas sobre um novo amigo, elas nunca perguntam sobre o essencial. Elas nunca dizem: Como é o som de sua voz? Quais são os jogos que ele prefere? Ele faz coleção de borboletas” Elas perguntam: Qual é a idade dele ? Quantos irmãos ele tem? Quanto ele pesa? Quanto que o pai dele ganha? Só assim elas acham que podem conhecer alguém.(SAINT-EXUPÉRY, 2015,p.19)

Pessoas “grandes” perderam a grandiosidade se ser criança. Como o mundo seria melhor se os adultos aprendessem com as crianças, pois quando crescemos nos desumanizamos, ficamos vazios de inocência, de imaginação. Nos tornamos arrogantes, violentos. Nós adultos matamos todos os dias a nossa criança interior, retratamos uma sociedade doente, que silencia, que olha, mas não vê. Como nos coloca Lispector (2016,p.44): “Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos do que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe”. Somos cegados com números, com posições sociais, mas somos incapazes de ver o óbvio.

Mesmo a tantos anos estudando sobre filosofia, ainda não consigo dar uma resposta do que ela seja. O que sei, é que ela em nada se parece com adultos, mas é como uma criança, que olha o mundo com olhos de curiosidade, com olhos que veem, com abraços que curam. Uma criança filósofa, que me sacode para a vida, que me faz buscar a minha humanidade esquecida e que me desmonta em lágrimas quando aos gritos me diz: “ mãe, olha pra mim!”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Coleção folha: Grandes nomes da literatura. São Paulo: Mediafashion,2016.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno Príncipe: com aquarelas do autor. Trad. Rodrigo Tadeu Gonçalves. Petrópolis: Vozes,2015.

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