Desde as imagens e os acordes iniciais, o espetador é absorvido por uma atmosfera que vai definir o ambiente do filme, uma obra de ficção livremente inspirada na realidade histórica da escravatura, como explicitado no genérico. O ritmo é propositadamente lento, como convém. Podemos observar as expressões dos atores e interiorizar cada palavra dos diálogos, bastante sóbrios, mas intensos e evocadores, pontuados por algumas expressões fortes, insolentes, provocadoras ou ditos populares[2]. Há muitas frases com duplo sentido e intenção, virulentas, ignóbeis ou inspiradoras, daquelas que se eternizam naturalmente na memória dos espetadores.
Antes mesmo de sentir que é parte da narrativa, o espetador provavelmente será cativado pelas imagens: o enquadramento é muito envolvente e todo o cenário nos diz que o que vemos pode ser real, dentro e fora do ecrã. Começamos por conhecer algumas figuras trazidas pela maré, sobreviventes de um naufrágio causado por uma tempestade. Desde logo se impõe a questão: sobreviventes de quê? Do naufrágio, das sevícias da escravatura, do tráfico transatlântico, da viagem em condições ultra precárias nos porões de um navio negreiro? A verdade é que estas pessoas, negros e brancos, homens e mulheres – que vamos conhecendo devagar, uma após outra – trazem consigo uma história e um conjunto de contradições e vulnerabilidades.
Estamos, como nos diz o filme, “em meados do século XIX, algures no oceano Atlântico”. Esta breve menção permite localizar a ficção, dar algumas pistas, mas também torná-la o mais possível universal e intemporal. João Salvador, um negro escravizado já nascido no Brasil, não aparece logo de início, mas terá uma importância crescente na narrativa até ao final. João relembra, na mente do espetador, a ideia do corte forçado com o continente-Mãe, do qual não pode ter memórias. Mostra-se um líder natural, excecionalmente humano, embora tenha passado por um doloroso processo de coisificação, como os outros homens e mulheres escravizados.
João domina a arte de sobreviver, por instinto e treino, e deseja viver e amar como um homem livre. Sem ele, o “mordomo”, nenhum dos outros, daquele restrito grupo, teria provavelmente sobrevivido após dar à costa. Nem o fidalgo português Fradique Mendes[3], com ideias avançadas para a época (um abolicionista que tenta equilibrar-se entre as contradições do seu meio), nem o sorrateiro sacerdote, instável, libidinoso e medroso, nem o cínico e pragmático capataz do porão, anarquista, ameaçador, selvático, porventura o menos hipócrita de todos. Para este sinistro personagem não há princípios, mas apenas conveniências e oportunidades: “camarão que dorme a maré leva”.
Do grupo inicial fazem também parte duas mulheres, mãe a filha, Emília e Inês, que irão ter um papel de relevo ao longo do filme. Em momentos diferentes, essas duas mulheres vão dar voz ora ao amor insubmisso, ora à rebeldia, ilustrar o desejo ou a expetativa angustiada da maternidade iminente num microcosmos dividido entre escravocratas e escravizados. Não são perfeitas, não são heroínas, não são mártires.
Este filme mostra sem falso pudor várias facetas da crueldade – algo intrínseco ao ser humano – mas também da ética, da solidariedade e da amizade pura entre seres humanos. Põe em causa a noção de nobreza de caráter (muito para além dos títulos nobiliárquicos) e de selvajaria, reflete sobre o feminismo, as tradições – a manter e a descartar – e a incoerência do ser humano, que tanto defende valores eticamente louváveis como recorre a argumentos falaciosos para implementar pequenas vinganças e ajustes de contas pessoais mascarados de justiça.
Também explora a ideia de tomar o todo pela parte, assim como a questão dos danos colaterais: frequentemente as represálias recaem sobre os mais dóceis indivíduos, os parceiros, os irmãos, entre os quais a História sulca pungentes e profundos abismos. E a culpa individual mancha o coletivo, a culpabilização torna-se contagiante: homens e mulheres são simbolicamente linchados e apontados a dedo, não necessariamente pelo que fizeram, mas sobretudo pelo que representam e pelos silêncios que carregam.
Haverá escolha para o ser humano? Quais os limites dessas escolhas? No meio de todas estas interrogações constroem-se formas de cumplicidade e amizade improváveis entre a pesca, uma partida de xadrez ou de kiela, cânticos e danças. Entre os sobreviventes, pessoas escravizadas oriundas do Bailundo explicam, em breves deixas, como foram arrastadas para o Brasil. Para os espetadores angolanos esses pormenores fugazes revestem-se de especial beleza e emoção, tal como as canções entoadas em grupo.
O elenco é belíssimo, muito consistente (vide ficha técnica), com alguns nomes bem conhecidos. Atores experientes e convincentes, que atuam com grande convicção e naturalidade e conferem realismo a esta narrativa filmada. As personagens são multifacetadas, com uma grande riqueza psicológica, que nos impede muitas vezes de catalogá-las de forma maniqueísta. Não haverá forçosamente “maus” e “bons” entre os sobreviventes que sobem e descem arribas (de xisto?) em função das marés (da vida), mas apenas seres humanos impiedosos, implacáveis, filosóficos, inspiradores, martirizados, que sobrevivem como podem em função do meio que os moldou e das circunstâncias da época. Por todas estas razões e também pela beleza das imagens, de grande sensibilidade, considero este filme muito mais do que um bom momento de cinema, sem deixar de o ser.
Ver também:
Página do filme (inclui trailer): https://zeroemcomportamento.org/sobreviventes-novo-filme-de-jose-barahona-chega-aos-cinemas-a-3-de-outubro/
Data de estreia em Portugal: 03/10/2024
[1] O filme foi escrito em conjunto com o escritor angolano José Eduardo Agualusa e é a sua segunda longa-metragem de ficção. (Sobre Estive em Lisboa e Lembrei de Você, pode consultar aqui o meu artigo de opinião para o blog O Gazzeta: https://ogazzeta.blogspot.com/2016/11/estive-em-lisboa-e-lembrei-de-voce-um.html?q=estive+em+lisboa)
[2] Exemplos (excertos dos diálogos): “Muita fidalguia, mas pouca serventia”, “Preto não é homem, preto é peça”.
[3] Este personagem, o heterónimo coletivo que reúne vários escritores, entre os quais Eça de Queirós, vinca a relação do filme com o escritor Agualusa, que já o tinha “utilizado” no seu romance Nação Crioula.
Créditos imagens: Zero em Comportamento
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