SUBJETIVIDADES PANDÊMICAS, FRUSTRAÇÃO E ANGÚSTIA EM TEMPOS DE COVID-19
O homem em tempos de morte no ar recolhe seu corpo. Retira de si o espaço físico do além casa. Recluso espera. Espera que alguma coisa passe e o mundo lhe devolva a suposta liberdade que acreditava ter.
Afastados os corpos. O contato é venenoso, o contato é a morte invisível. Os meios de comunicação abrem um discurso de pânico. Ciência, religião, opinião, besteira e mentira se entrelaçam em contendas na maioria das vezes atravessadas por interesses políticos.
Dentro de casa. Sentado e angustiado, os corpos da humanidade recebem o impacto das mortes que se sucedem e a sombra próxima de um vírus capaz de dizimar todas as expectativas desses corpos. Cada um busca uma forma, um meio de se defender. De proteger sua existência. Aqueles que possuem mais, estão mais cômodos, mais confortáveis, abrigam-se e dispõem de recursos muitas vezes nem imaginados pelo outro grupo, que sem muito o que fazer enfrenta o risco de morte com o que pode. E isso significa quase nada. Morrem de ambos os lados. Os corpos caem, não resistem.
Por parte do governo uma total displicência, ou até mesmo, poderíamos dizer, um fatalismo. Não importa as pessoas nem as mortes. Os sujeitos para o governo são os números, os dados estatísticos, não de mortos ou recuperados, mas os dados que revelam, ou velam o corpo do capital.
Vivemos em um país em que pessoas são transformadas em números, que passam para dados e que são avaliados economicamente. Morrer às vezes é lucro. A morte gera lucro.
Enquanto o vírus do covid-19 permanece em nossas janelas e portas, o mundo gira lentamente. O tempo perde sua agressividade, aquela violência que nos obrigava a produzir, a fazer coisas, aquela violência que segmentava os dias, as semanas, os meses. O relógio gira seus ponteiros. Mas continuamos sempre ali. Sempre no mesmo lugar. Sempre o mesmo dia. O relógio perde seu caráter de patrão. O mundo acorda e dorme, come e bebe em um fora do tempo estipulado. Não há regras, o tempo perdeu sua funcionalidade. Vivemos em um imperialismo espacial. É o espaço, mínimo, reduzido, recortado, editado, controlado, vigiado que nos conduz que nos orienta que nos escraviza.
Há um inimigo que espreita que nos quer. E todo o cuidado é insuficiente.
Aprendemos a lidar com as tecnologias, e entendemos que nosso corpo orgânico já não é distinguível da máquina. Somos partes. Nós de suas engrenagens, ela da nossa carne. Não se distingue sujeito e objeto, nosso rosto alia-se aos fluxos tecnológicos e reproduz os contatos físicos que já não nos pertence. Nossa voz é gravada e enviada em fluxos para o deleite de outros corpos ávidos pelo som da voz humana. Conferências, reuniões, debates, aulas, negócios, prazeres… tudo devorado por uma nova formatação social. O comércio se reestrutura. A distância que parecia ser o abismo final começa a ser abraçada pelos braços libidinosos do capitalismo. A distância, e as formas online de cobri-la são monetarizadas.
“Empresas aprendem a “tirar” lucro da ausência, do silêncio, da angústia, do medo”.
E o corpo que está em casa começa a naturalizar o medo e a angústia. A morte – enquanto dos outros – é uma ficção, um número. As cores, os mapas epidemiológicos engendrados acabam vulgarizando o perigo e de certo modo irritando as expectativas de uma sociedade que não sabia que não era “muito humana”.
O comércio e toda sua estrutura política insistem em um discurso de flexibilização. A Economia é tratada como a única vítima de toda a pandemia. E também como a única coisa que deve ser REALMENTE protegida. Neste intuito, são tecidas várias narrativas para legitimar essa verdade.
Enquanto isso, os poderes políticos e as estruturas que tencionam as forças que gestam o país preferem escolher como inimigos o funcionalismo público.
Tudo que é votado tem como foco retirar força, poder, autonomia, direitos e dinheiro dessa classe de trabalho.
Presos aos celulares e aos computadores, carregados pelas correntes caudalosas das redes sociais, vemos o país sendo vendido, queimado, roubado. E nesta nova sociabilidade, militamos com hashtegs, e memes pelas redes sociais.
A religião se alvoroça e percebe que pode ter poder de estado. Bispos, padres, pastores poluem nossas telas de tv, celular e computador. As redes sociais replicam seus rostos, suas ideologias, seus ritos, seus seguidores. O que era religião vira política, o que era política vira seita religiosa. E em seguida surgem os escândalos, os gritos.
Presos em nossos cubículos domésticos, assistimos atônitos, à ignorância, a barbárie, a babaquice, o ridículo travestirem-se de respeito, de moral, de ética, de justiça. E saltamos nas redes. A luta, qualquer luta agora é na e pelas redes. Disputa-se a verdade através da mentira. Mentir é normal nas redes. Fake. A palavra do século. Tudo é fake. Na verdade não haveria outra palavra para definir este momento. A verdade não importa. Vivemos o império da opinião.
E as mortes continuam e o vírus ainda não foi embora. Mas começam a produzir um outro discurso. Ainda em videoconferências, políticos e empresas afirmam que as escolas devem abrir. Que os alunos devem voltar. Escola e alunos são substantivos fáceis, tranquilos de usar nesse tipo de discurso. Quando falamos em escolas e alunos, continuamos falando através de signos. Deixamos de nomear as pessoas. Crianças.
As crianças e os jovens serão as grandes cobaias dessa empreitada. Algo que nem em filmes pensaríamos. A morte está solta, mas vamos mandar nossos filhos pra rua pra ver quantos morrem. Se for um número pequeno sairemos no lucro…
Presos em nossas cadeiras, com as costas doendo pela falta de atividade física ou já entrando em depressão, nossos corpos, nossos corações, nossa alma busca alento nas atitudes de nossos líderes.
E então a frustração é triplicada. Falcatruas, corrupção, negociatas, negacionismo, estupidez, agressividade. O governo declara guerra às classes mais pobres, precariza a economia dos grupos mais carentes, tripudia dos direitos humanos, achincalha a luta das mulheres, dos negros, dos LGBTS.
Promove um discurso do ódio e da violência “abençoado” por certas entidades religiosas.
Um jornalismo frágil e tendencioso brinca de fazer pirraça ao governo enquanto as empresas das quais são o produto aplaudem e defendem as propostas econômicas que arrocham a população.
Vivemos na era do jornalismo cínico.
E engordamos. Frustrados. Angustiados. Temerosos. Ao mesmo tempo que expandimos nossas imagens, nossa voz, nossas palavras escritas em redes sociais online, recolhemos nossa carne para uma concha angustiante que começa a nos sufocar.
O que parece que está acontecendo é que nos duplicaram. Nossas imagens estão livres e soltas pelos fluxos midiáticos. Nossos corpos, estão presos e adoecidos. Isso me faz lembrar do filme Surrogates que fora baseado em uma história em quadrinhos com o mesmo título. “Substitutos”, estrelado por Bruce Willis.
As pessoas em casas e robôs “vivendo” a vida.
Aqui no Brasil os robôs roubam a verdade. Redes de fake news e os famosos robôs do presidente já se transformaram em memes. Naturalizados, aceitos e inclusive defendidos por um grupo de pessoas que se alcunharam de “homens de bem”.
No Brasil pandêmico, até a palavra “bem” se afunda e é arrastada pelos discursos delirante de um grupo de pessoas que consagram a arma como seu símbolo maior e o ódio e a raiva como narrativas de vida.
Ronie Martins
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