“SUICIDADOS PELA SOCIEDADE”
Por: Diego El Khouri
Esses espectros agitados, será o pensamento
Do poeta embriagado, ou suas saudades, ou seu remorso,
Esses espectros agitados em turba cadenciada,
Ou bem são simplesmente mortos?
Verlaine
Espectros sombrios no “torniquete da consciência”. “Delirium Tremens diante do paraíso”. Palavras submersas no seio da imaginação, subvertendo e criando. Asas cortadas, mutiladas perante paredes calcificadas de merda.Trincheiras de guerra e prisões subalternas, — tristes aparições nas pegadas frias da noite. Artistas na diáfana lucidez, libertos /translúcidos (vorazes palavras de intensa sensibilidade), espécies de xamãs, na qual “as pessoas projetam suas fantasias e elas se tornam reais”… Asas cortadas…Voo rasante de rapina… Peito aberto feito ferida… O olhar visionário e as “portas da percepção” blakeanas… todo um arcabouço de lamento e dor… Quantos “cientistas do imaginário” não terão sofrido injúrias, descasos em vida e miséria financeira para enfim na posteridade gozar de privilégio e estímulo? Quantos não caíram de joelhos perante a grandeza transformadora das artes e se viram com as chagas do sacrifício imposto perante essa sociedade cada vez mais mecanicista e pragmática? Quantos, em vida, foram vistos como meros energúmenos fracassados para, então, após a morte serem tratados como gênios? Antonin Artaud foi um desses seres dilacerantes e “estranhamente talentosos”. Poderia citar inúmeros outros; nomes não faltam (Van Gogh, Camille Claudel, Allen Ginsberg, Carl Solomon, Gustave Flaubert, etc.). Sensibilidades a frente de sua época. Normalmente pessoas não convencionais, pouco atreladas ao conformismo e modas vigentes de determinado período e com um poder de criação, reflexão e ruptura acima de níveis comuns, podendo sim alterar realidades e percepções, ultrapassar fronteiras e criar novas teias de conhecimento. Mágicos manipulando símbolos, arquétipos. Incomodam poderes, chocam burguesias estabelecidas e agridem as normas de qualquer crença religiosa-hierárquica. Estão portanto, propícios às críticas, lançados aos turbilhões insanos, levados muitas vezes a total incompreensão. Antonin Artaud conhecia isso tudo. Sentiu na pele todos esses dilaceramentos, “a via crúcis do corpo e da alma”…
Antonin Marie-Joseph Artaud nasceu em Marselha em 4 de setembro de 1896, filho de um empresário de transportes marítimos e descendente de gregos, tanto pelo lado materno como paterno. Considerado o pai do teatro moderno, teatro esse chamado também de “teatro da crueldade”, dedicou toda sua vida para expressar uma visão acerca da “verdadeira e imortal liberdade”. O teatro, campo de diálogo, catarse e crítica, seria o motor para empreender através do corpo uma liberdade que chocava e proporcionava a sede do viver. Uma vida emergida em intensidade e chamas.
Apesar das cartas que escrevia fossem a sua forma de expressão preferida (estas ajudavam na sua luta pungente em permanecer lúcido), Artaud teve uma vida cultural agitada, dedicando-se ao cinema, teatro e a literatura. Aos 19 anos fez sua primeira internação em um sanatório, passando toda uma vida em sucessivos tratamentos psiquiátricos. Em 1937 foi internado no sanatório Le Havre-Rodez, onde passou nove anos e escreveu as Cartas de Rodez. Nas cartas pedia para o médico eliminar o tratamento de eletrochoques. Foi em Rodez que Antonin Artaud escreveu, por exemplo, em 1945, o livro “Viagem ao País dos Tarahumaras”, lembranças de suas viagens pela Sierra Tarahumara, no México, no intuito de conhecer a tribo com o mesmo nome. Sua jornada foi um misto de criação e dor, rupturas e encarceramentos. Outro nome que se aproxima dessa mesma metafísica foi o artista plástico holandês Van Gogh (1853-1890). Este dizia que a pintura estava cravada na sua pele. Assim se referia a esse ofício. Tinha uma visão sublime de entregar-se ao além, a Deus e as forças primordiais da existência. Inquieto resolveu tornar-se pastor como seu pai e foi reprovado em teologia no ano de 1878. Partiu para Bélgica com o objetivo de evangelizar os trabalhadores de uma mineração de carvão. Conheceu a extrema pobreza e começou a viver com os pobres. Fazia do chão sua cama, das pedras o travesseiro. Sua falta de banho, que o fazia ter um cheiro muito desagradável, incomodava as demais pessoas e seu jeito taciturno assustava a população local. Viveu com paixão tais buscas. Na pintura posteriormente viveu também dessa forma. Pintou mais de 800 telas em vida apesar de ter ingressado tarde nessa arte. Durante os últimos 3 anos de sua vida chegou a pintar cerca de 500 obras e em seus últimos 69 dias deixou sua assinatura em até 79 delas. Situações dramáticas acompanharam toda sua existência até dar por fim sua própria vida quando ele disparou uma arma contra si mesmo em 29 de Julho de 1890 (“mas existe uma versão recente na qual se discute que o disparo foi efetuado acidentalmente por dois rapazes que brincavam com uma pistola”). Uma alma inquieta, sedenta, ardendo em febre.
Para alguns artistas “vida e arte não pode ser dissociada”. O elemento de criação parte de dentro para fora interagindo e mesclando no olhar sutis gradações de sensações que mesclam realidade e sonho. O mergulhar em si mesmo é tarefa difícil, para poucos. Só esses párias para compreender na plenitude tais vicissitudes . Artaud entendia muito bem isso e não foi atoa que escreveu a obra “Van Gogh — Suicidado pela sociedade.” É “preciso penar muito para chegar na essência”. Artaud dizia que o artista plástico holandês foi empurrado para a morte pela sociedade. Essa sociedade que não entende e excomunga tais sensibilidades. Em Paris no ano de 1947, poucos dias antes da abertura de uma exposição de Van Gogh, o galerista Pierre Loeb pediu ao Antonin Artaud que escrevesse sobre o pintor. Essa obra vem para afirmar o espírito do olhar “não familiar” (usurpando um termo do psicanalista Sigmund Freud) dentro dessa sociedade mecanicista. As dores causadas e o sentimento de exclusão dentro desse caráter social foram empecilhos que sofreram grandes nomes das artes ao longo da história. Dizia Artaud : “Durante muito tempo me apaixonou a pintura linear pura até que descobri Van Gogh, que pintava, em lugar de linhas e formas, coisas da natureza morta como que agitadas por convulsões.” Essas convulsões e a potência elevada de suas criações e, por consequência, dessa sensibilidade à flor da pele, causou (e causa) essa ideia do louco, do mártir, do excluído dos demais. Nessa obra sobre Vincent Van Gogh, Artaud faz sua defesa própria usando a figura do pintor para dialogar e propor reflexões sobre de tais temas. Não há loucura, nem delírio; é a sociedade que sempre está um passo atrás dessas grandes “sensibilidades selvagens”.
11-09-2018
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