Por Milton T. Mendonça
Superfície – Capítulo 10
– Nas quatro horas seguintes os visitantes vieram conversar e fazer os pedidos ao qual esperávamos. Todos sem exceção pediram algo para levar consigo. Os dois indivíduos que tinham passado a noite com as meninas queriam levá-las de qualquer maneira e conseguimos vantagens jamais imaginadas. Foram nossos melhores aliados e nas crises os que mais se empenharam para nos ajudar. Formatamos a memória das moças e acrescentamos alguns dados para melhorar a convivência deles como casais e deixamos que se fossem em paz.
– As últimas reuniões que tivemos naquele mesmo dia criaram o consórcio que deu inicio a nova era. Cada um assumiu o compromisso de implementar nosso plano em seu local de influência. Os trinta anos seguintes foi de muito trabalho com reuniões intermináveis, mas conseguimos impor nossa filosofia e construir uma nova civilização mais limpa tanto moral como tecnológica. A ecologia foi impulsionada transformando o planeta em um local ideal para se viver. A primeira geração de homens após as mudanças alcançou uma média de vida útil quase uma vez e meia mais do que a geração que a precedera e fomos obrigados a sair para o espaço. Necessidade, aliás, que já tinha sido previsto e planejado. Apenas iniciamos o processo na época idealizada. No final desse tempo, o computador central havia alcançado o planeta inteiro. Sabíamos em tempo real tudo que acontecia não importava a distância ou o quanto inacessível o local podia estar. Mas o povo era livre. Não tínhamos controle sobre a singularidade de cada um. Sempre respeitamos a privacidade dos indivíduos, conforme exigência de Primicia. O que foi confirmado como uma atitude inteligente pelo despertar do homem moderno. Em apenas trinta anos o homem se transformou de uma potencia adormecida cheio de doenças psicossomáticas em uma usina de criatividade e coragem, saudável mental e fisicamente.
– Após essa fase de transição a calmaria se estabeleceu abrindo espaço para pensarmos nas coisas lúdicas. O trabalho já não era mais algo que definia o caráter do individuo. Os valores foram mudando para algo mais coerente com o espirito humano. Podíamos nos dar ao luxo de ficar ociosos sem consciência culpada. Tudo estava mecanizado. A indústria não tinha mais humanos no interior de seus prédios. Muitos problemas de fabricação foram solucionados apenas levando-as para a lua, que longe da gravidade diminuía o custo e melhorava a qualidade de qualquer produto. Especialistas controlavam tudo através dos computadores de suas próprias casas evitando engarrafamentos e horas perdidas no trânsito. Pela primeira vez na historia da humanidade o homem estava livre para fazer o que quisesse.
– A sociedade mudou. A primeira transformação foi a relação trabalho remuneração. Deixou-se de pagar pelo status para se pagar pela proficuidade do serviço prestado. Sem necessidade de brigar pelo alimento diário o trabalho tornou-se um prazer e as poucas horas usadas para esse fim passou a ter um aproveitamento excepcional refletindo na qualidade e na utilidade dos produtos projetados. A vida ficou mais fácil arremessando o homem comum para um novo patamar. Deus deixou de ser o ultimo refugio para os desesperados para ser o ícone da nova era. Ser justo com seu próximo valia o respeito e não o escárnio de outros tempos. Nesse tempo não era mais a mesquinhez que impulsionava o homem, mas a nobreza de caráter.
– Tínhamos cunhado uma nova civilização e com ela criado novos problemas.
– Era muito ruim viver nos outros tempos como dizem, bisa?
– Digamos que era perigoso… Precisava ter muito sangue frio para não pegar em armas e fazer um estrago…
Elisa sorriu lembrando-se de seus pares e sua falta de discernimento. Pareciam pregos. Tudo que olhava enxergava como martelo.
– Infelizmente não existe como fugir dos problemas. Eles são um subproduto da ação. É a demonstração da nossa incompreensão do universo. Da nossa falta de controle sobre a vida… Enfim, eles demonstram bem que por mais que tentamos – e é isso que faz a vida valer a pena – jamais será resolvido. Apenas mudarão de cor… De cara.
– Esse é um dos motivos que me faz ir a Ganimedes. Estou em férias pela metade. Vou também como embaixadora…
– Como?!
Muai levantou a cabeça, espantado.
– A senhora não vai ficar comigo?
– Você não ficará sozinho, meu querido. Terá muita coisa para fazer. Estarei ocupada apenas poucas horas depois poderemos nos divertir.
– Acho que preciso esticar as pernas. Não está com fome? Vamos até lá em cima comer algo?
Elisa falou rápido tentando fugir das explicações que seriam exigidas. Ele se levantou de um pulo caindo no corredor. Rindo alto e sem dar tempo para mais nada disparou em direção à escada que o levaria ao convés.
Elisa fechou os olhos por um momento ainda sorrindo. Sacudiu a cabeça lentamente como se o susto que levara a tivesse atordoado.
Levantou-se e caminhou em direção a escada subiu-a e se deparou com a claridade exuberante que mesmo filtrada pelo teto transparente incomodava os olhos. Observou sua volta vagarosamente percebendo com alegria a movimentação colorida e úmida. Todos a bordo resolvera aproveitar as delicias da área de lazer ao mesmo tempo. Era a última oportunidade – ouviu a voz do capitão pelo alto falante – a nave aportaria em Ganimedes nas próximas horas. Amanheceria no solo – pensou sorrindo com a perspectiva.
– Bisaaaa!
Ouviu ao fundo abafado pela algazarra. Procurou entre as pessoas até seus olhos encontrarem os de Muai que acenava pateticamente sentado próximo à borda da piscina com um espantoso lanche a sua frente e um sorriso maroto no rosto limpo e angelical.
Caminhou sem pressa em sua direção sentindo na pele o respingar das gotículas de água que flutuavam após serem jogadas no ar pelas acrobacias dos nadadores de final de semana, que disputavam a melhor coreografia se atirando de trampolim cada vez mais alto.
Alcançou-o e se sentou colocando a bolsa sobre a mesa. O garçom aproximou-se e ofereceu o cardápio. Pediu um lanche natural e um suco de melancia.
– Estamos chegando! Falou olhando-o comer aquele enorme sanduiche.
– Chegando? Perguntou com a boca cheia.
– Sim! Amanheceremos em Ganimedes. Não ouviu o capitão?
– Hum! Hum!
Grunhiu balançou a cabeça e arregalou os olhos.
Estava feliz apesar dos problemas que a esperava. Olhou em seu entorno com simpatia. A alegria dos outros sempre a contagiava. Mirou o céu através da cúpula e pensou ver Ganimedes, mas sabia não ser verdade. A nave precisaria contornar Júpiter para poder encontra-lo. Lembrou-se da animação dos cientistas quando entregou a tecnologia que os libertaria da janela para o espaço exterior. Não precisariam mais se preocupar com o momento certo de lançar suas espaçonaves. Poderiam leva-la onde desejasse manobrando-as como um avião comum. Ou um transatlântico enorme e sem peso algum.
Pensou sentir o leve movimento de frenagem. Estavam a milhares de quilômetros de seu destino, mas perto o suficiente para começar a frear o bólido. Chegariam em breve.
O garçom trouxe seu pedido e comeu em silencio saboreando o momento de serenidade. Dependendo de seu desempenho na crise que se avolumava não teria outra chance de se alimentar com tanta tranquilidade por um logo tempo. Mentira para Muai. Poderia ter que deixa-lo sozinho toda sua estadia na lua de Júpiter. Foi por isso que decidira alojá-lo na fazenda de End. A principio não queria incomodá-la em sua aposentadoria. Sentiu remorso apesar do entusiasmo da amiga. Lembrou-se da felicidade de sua escudeira ao saber que seria ela a mediadora do conflito e fez questão de servi-la como antigamente. Muai estava em boas mãos – olhou-o com ternura e sorriu-lhe recebendo em troca uma piscadela. Como parecia João – refletiu impressionada como sempre fazia ao se deparar com a similaridade. De todos os homens da família ele era o mais próximo de João.
– Precisamos dormir um pouco antes de chegarmos. Não está cansado?
– Mais ou menos… Quero ver o atracamento, bisa. Vamos ver o atracamento?
– Vou pedir ao capitão que nos avise…
Levantaram-se da mesa depois de algum tempo e antes de retornar à cabine encostaram-se a amurada para olhar o espaço sem fim uma vez mais. Muai estava eufórico apontou as plêiades com seu aglomerado de estrelas azuis na constelação de touro admirando sua beleza.
– Algumas dessas estrelas na realidade são apenas poeiras refletindo a luz do seu entorno. Infelizmente não conseguimos enxerga-las… Serão dispersas pela ação da gravidade e se espalharão pelo universo. Talvez passem pela terra trazendo alguma matéria nova… Ou alguma vida.
– E lá é Júpiter É lindo não é bisa? Entre suas três luas, Ganimedes é a maior e a mais habitável. É maior que plutão e mercúrio, apesar de ter somente a metade da massa desse último. Iniciou-se a terra formação, mas ainda não está completa. Antes tinha apenas uma fina atmosfera com oxigênio e ozônio. Era extremamente gelado e cheio de crateras. Ainda existem crateras é claro, mas já não é tão gelado e podemos viver sob seu céu sem morrermos asfixiado. Daqui mais cinquenta anos teremos uma atmosfera igual a da terra. Poderemos fazer qualquer coisa sem necessidade de carregarmos oxigênio.
– Você sabe muito sobre Ganimedes, meu bem.
– Pesquisei bisa…
Muai riu alegre satisfeito com o elogio de sua bisavó.
– Quero ver as luas do solo. Além das três maiores existem centenas de pequenas luas gravitando o planeta. Deve ser impressionante principalmente a noite. Você não acha bisa?
– Sim… É muito impressionante mesmo.
– O dia lá tem sete dias dos nossos vai ser difícil nossa adaptação. Vamos ficar sem dormir por muitos dias e poderemos dormir por semanas – ele riu achando graça das próprias palavras.
– Não é bem assim meu bem, nos adaptaremos quimicamente…
– Vou virar um zumbi? Olhou-a fazendo troça.
Elisa sorriu achando graça da imaginação de Muai.
– Se não formos dormir e começar nossa adaptação com certeza Ganimedes nos transformará em zumbis e ficaremos perdidos em suas crateras geladas. Vamos meu querido antes que seja tarde demais…
Voltaram a cabine e acionaram as poltronas descendo ao apoucado alojamento para passar a noite. A manha foi anunciada pela voz do capitão despertando-os com o aviso de que faltavam apenas quatro horas para começar o atracamento. Levantaram-se tomaram a ultima refeição na gigantesca nave e foram para o convés assistir as manobras como Muai queria.
A espaçonave estava parada e o assombroso planeta ao fundo inspirava temor. Podia se ver o oceano recém-formado e pontos escuros onde se deduzia ser profundas crateras. Distinguiam-se montanhas de grandes dimensões horizontais contrastando com as mesmas crateras, advindo ao pensamento por complementação sua altura excepcional.
Uma sacudidela colocou em movimento a enorme máquina que penetrou na estrutura que esperava parada sob força gravitacional da poderosa lua e se prendeu em ingentes braços metálicos. Os passageiros desembarcaram passando por onde haviam entrado, mas agora ligado ao espaçoporto de Ganimedes.
Enquanto caminhava em direção ao veículo que os transladaria ao planeta repassou mentalmente os problemas que a esperava e a solução que trazia. A duvida surgiu inesperada.
Continua no próximo capítulo…
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