Por Milton T. Mendonça
Superfície – Capítulo 6
– Onde estamos? – M perguntara ao me ver em pé no corredor da nave.
– Estamos a caminho do planeta Damnatio na constelação de Alfa centauro sob a influência de Rigil Kentaurus mais conhecida como Alpha Centauri A, a quatro mil e quatrocentos anos luz do nosso sol. Não fisicamente é claro – virtualmente. Queremos que conheçam nosso vizinho mais próximo: a raça Damnatiana.
– Sentira os olhos de todos fixos em mim e percebera a expressão de espanto se formando conforme ponderavam sobre minha explicação. Na primeira vez que se viajava no MPN era difícil distinguir que aquele espaço ao qual vivenciávamos não era a realidade. Portanto sabia que haveria alguma confusão.
– Espera aí! – L gritara lá de seu lugar mais ao fundo – Quer dizer que levaremos quatro anos e meio para chegarmos a esse lugar? Como é o nome mesmo?
– Damnatio. Se estivéssemos viajando na velocidade da luz sim… Mas viagem nessa velocidade é impossível para uma nave espacial.
– Isso quer dizer o quê? Vamos ficar a vida toda nessa geringonça viajando pelo espaço?
– Não. Imagine como se estivéssemos dentro de um filme. Dentro da realidade virtual… Do seu notebook. Tudo que está vendo se passa apenas dentro de seus neurônios seu corpo físico está na lua deitado no divã você não se lembra? Está conectado através do sistema nervoso central. Basta desligar a máquina que estaremos de volta. Claro que poderíamos ir à Damnatio fisicamente se quiséssemos. Usando os portais do hiperespaco chegaríamos em alguns minutos, mas não poderíamos descer em sua superfície.
– Porque não? Alguém perguntara.
– Sua atmosfera é muito densa para nós. A pressão é de milhares de hPa por centímetro quadrado e sua temperatura é próxima a do interior de um vulcão em erupção. Claro que já estivemos lá e é por isso que podemos estar aqui hoje, mas não é muito cômodo para nós caminharmos na sua crosta. Precisamos usar equipamentos muito pesados e não temos ninguém lá atualmente para dar apoio. Não queremos incomodar nossos vizinhos sem necessidade.
– Existe vida inteligente lá? – C perguntara espantado.
– Íamos fazer surpresa, mas vejo que a curiosidade é muito grande… Pois bem, vou explicar como é nosso planeta de destino. Talvez seja até bom, assim poderão enxergar coisas que talvez não vejam se desconhecerem sua história.
– O nosso planeta de destino é imenso e seus habitantes são criaturas de silício. Não de carbono como nós e não gostam nem de oxigênio e nem de água que é a nossa fonte de vida e sem esses dois componentes químicos morreríamos fatalmente. O oxigênio reage com eles de maneira impressionante endurecendo seus corpos e matando-os lenta e doloridamente. A água simplesmente não é absorvida pelo seu sistema e não faz nenhuma diferença em seu habitat. O solvente confiável para o silício é o ácido fluorídrico. Quando digo solvente quero dizer que o solvente é uma química que pode liberar nutrientes para as moléculas básicas, que podem levar os resíduos e que podem regular a temperatura. Simplificando, esses seres excretam ácido em vez de água como nós. Portanto vocês podem imaginar como deve ser terrível para as duas espécies compartilharem o mesmo espaço.
– Você disse que convivemos com eles em alguma época?
– Sim. Houve ocasião em que membros de nossa sociedade foram exilados por motivos políticos e passaram vários anos vagando entre eles como membros de nossa embaixada em seu planeta. Tudo que conhecemos é fruto de estudos feitos por esses desbravadores audaciosos.
– São inteligentes mesmo ou se parecem com cachorro… Golfinhos?
– São muito inteligentes. Talvez até mais do que nós. Aprendemos muito com eles sobre astronomia, matemática… Sobre ciências em geral. Desenvolvemos juntos os portais do hiperespaço e sem eles isso não seria possível.
– Como eles são fisicamente? – alguém perguntara.
– Finalmente bisa – Muai exclamou – Pensei que ninguém ia perguntar…
Elisa parou de falar e encarou Muai que debruçado na mesa olhava hipnotizado para seu rosto. Havia terminado de tomar seu sorvete e começava a se cansar de ficar sentado no mesmo lugar. Principiava a fazer movimentos bem típicos de criança de sua idade.
– Vamos parar um pouco meu querido…
– Agora bisa? Quero saber o que eles acharam… Quando eu os vi pela primeira vez levei um susto daqueles.
– Quando você os viu?
– Faz tempo… Quando eu fui pela primeira vez na escola… Já tinha visto antes, mas não sabia o que era então não prestei muita atenção. Na escola foi diferente a professora explicou passou filme e tudo. Aí é que fui pensar a respeito… Achei bem esquisito.
Elisa apertou o botão no centro da mesa e o garçom apareceu imediatamente trazendo o leitor em uma das mãos e o guardanapo na outra. Ela disse que queria fechar a conta e o moço estendeu o aparelho em sua direção. Imprimiu o dedo indicador a um canto e esperou alguns segundos enquanto a maquina escaneava sua digital. Levantou-se e se dirigiu para a escada que a levaria a sua poltrona. Antes de começar a descida olhou para trás e pode ver Muai correndo em sua direção.
Sentaram-se nas poltronas e antes que Muai falasse alguma coisa Elisa tocou-o para chamar sua atenção.
– Você não está cansado? Perguntou acariciando seu braço.
– Um pouco…
– Faz mais de oito horas que estou falando. Que tal dormirmos um pouco? Faltam menos de trinta horas para chegarmos e não quero estar com olheiras quando descer em Ganimedes.
– Está certo biselisa. Também estou cansado…
Elisa apertou o braço da poltrona e sentiu o solavanco em sua espinha. As poltronas subiram alguns centímetros e o piso sob elas se abriu. Em seguida o corpo de metal de ambas começou descer pelo alçapão estacionando em um amplo aposento decorado com sofisticação e bom gosto. A parede repleta de obras de arte de vários mundos deixava o ambiente rico em sensação ambígua. Uma porta encravada no lambri levava para o lavabo e outra do lado oposto dava passagem para o piso da primeira classe onde ficava o restaurante, a sala de massagem e o Salão para conversas formais e reunião de negócios.
Muai levantou-se da poltrona e foi ao lavatório. Tomou banho e vestiu o pijama retornando a poltrona que tinha se transformado em uma cama de solteiro bastante confortável. Deitou-se e se cobriu. Elisa beijou sua testa despediu-se com um afago e foi se preparar para algumas horas de relaxamento e sonho.
O relógio despertara às oito horas pelo horário da terra. Muai pulou da cama ansioso, cantando alto, barulhento como toda criança de sua idade. Elisa espreguiçou-se e sorriu com o excesso de energia de seu bisneto. Lembrou-se do filho que àquela hora devia estar na empresa em uma de suas intermináveis reuniões. “Preciso mandar uma mensagem para tranqüilizar a família”- pensou enquanto esperava sua vez de fazer a higiene matinal.
Encontraram-se novamente um pouco depois na mesa do desjejum do restaurante da primeira classe. Muai tomava um enorme copo de chocolate enquanto o croissant que seria deglutido em seguida esperava no prato a sua frente.
– Bom dia, meu querido! Elisa exclamou ao chegar mais perto.
– Bom dia biselisa. Vamos continuar a história?
– Calma rapazinho. Deixe-me comer algo depois daremos continuidade à história. Está gostando?
– Muito! Não vejo à hora de colocar na internet. Vou ficar famoso – riu entusiasmado ao terminar a frase.
– Fico feliz que esteja feliz – Falou olhando bem dentro de seus olhos.
Muai parou e pensou por um momento na frase que acabara de ouvir e sorriu concordando.
Fizera o resto do lanche calada. Muai cantarolava e se mexia imitando uma dança que Elisa não conseguira decifrar. “È uma criança maravilhosa.” Pensou consigo mesma. “Tão cheia de energia.” Ficou observando enquanto devorava seu croissant como um monstro, fazendo ruídos guturais incompreensíveis.
Levantaram-se da mesa após o termino do desjejum e subiram a rampa para o deque da espaçonave. Lá em cima estava repletos de pessoas tomando banho de piscina ou sentados a sua volta com copos na mão. Elisa observou acuradamente em busca de rostos conhecidos. Sorriu ao perceber que não eram os mesmos do dia anterior. Por um momento imaginara que aquelas pessoas não haviam se afastado do local nas últimas doze horas. Mas se enganara. Mesmo sem o por do sol o corpo exige descanso. Outros tomaram o lugar.
Encostaram-se à amurada e observaram o espaço. A nave em vôo de turismo cruzava o universo em velocidade de cruzeiro. Dava para ver um planeta gasoso se aproximando ao longe.
– Como é lindo o universo não é mesmo biselisa?
– Lindo! Poderia viajar para sempre…
– Meus amigos vão morrer de inveja quando eu contar.
Elisa olhou-o com ternura. Muai encostava o nariz no polímero transparente formando uma roda de vapor em torno da boca.
– Vamos continuar a história agora, bisa? Muai perguntou após ficar um tempo em silêncio.
– Vamos voltar para a poltrona – Elisa respondeu – Continuemos com a história então…
Retornaram ao salão de passageiro da primeira classe. As poltronas já haviam sido içadas e nada dizia que embaixo delas existia um camarote confortável e privativo. Sentaram, se acomodaram e Elisa olhou fixo para Muai que se debruçara no apoio de braço e a observava expectante.
– Muito bem, meu querido. Onde estávamos mesmo?
– A senhora ia falar sobre a aparência dos damnatianos.
– Isso mesmo, vejo que ainda se lembra…
– Claro bisa – Muai fez um trejeito de desdém.
– Pois bem, vamos lá então… A pergunta foi feita:
– Como eles são fisicamente?
– Fisicamente? Respondera – Parece que o universo já definira o desenho para os seres inteligentes que desempenharão a função de liderança em seu meio. Como a matemática, é imutável. Os damnatianos apesar de diferentes no todo são parecidos conosco quando se fala nos membros externos. Basicamente eles têm cabeça, tronco e membros como nós. A cabeça é alongada para cima como uma gota d’água. Essa ponta juntamente com a tatuagem que recobre toda sua extensão como cabelos são únicas para cada individuo, definindo sua característica individual. Poderia dizer que é sua marca registrada. Dois olhos com visão periférica de cento e oitenta graus com uma capacidade maior para enxergar, no espectro, o comprimento de onda mais próximo ao ultravioleta. Não tem nariz. Por causa do excesso de calor e também porque a atmosfera não tem ar para carregar as moléculas do componente químico que teria o cheiro, o nariz não tem muita utilidade. A boca é pequena e o que poderíamos chamar de lábios é apenas um pequeno relevo que acompanha todo seu perímetro. Em seu interior uma cartilagem resistente de sílica metalizada faz o papel de dentes. Não têm pelos porque não suam, mas existem tatuagens em algumas partes da cabeça e rosto. Onde deveria ser as sobrancelhas uma tatuagem intrincada transmite ao interlocutor a sensação de expressão. E em vez de cabelos, como disse a pouco, existe aquele desenho único ao qual me referi.
– O pescoço alongado movimenta a cabeça noventa graus para cada lado e liga a um corpo fino com duas pernas e dois braços. Cada perna é separada em duas partes que são unidas por uma rótula que se movimenta ao contrário do nosso joelho – parece mais com o joelho do camelo – o que lhes dá flexão para saltar dez vezes mais alto do que a gente. Isso se estivesse na terra. Em seu planeta devido à alta pressão conseguem apenas se igualar a nossa melhor marca. Os pés uma prancha proporcional a altura do individuo que alcança em média um metro e vinte, tem quatro dedos na frente e um atrás o que permite uma estabilidade maior, porque aquele planeta é açoitado constantemente por correntes altíssimas de vapor quente.
– Dois braços como os nossos com duas mãos em cada ponta sai do tronco e se alonga até próximo aos joelhos se ficar estendido ao lado do corpo. As mãos desenvolvidas para construir coisas e pegar objetos têm cinco dedos disposto da mesma maneira que a nossa. Parece que esse desenho venceu na evolução em qualquer parte do universo. E claro que o polegar está tanto nos pés quanto nas mãos para melhorar o desempenho dessa ferramenta maravilhosa. Nos pés existem dois polegares um na frente e outro atrás.
– O silício não é simplesmente capaz de variabilidade na formação da cadeia como é o carbono. Colocara na tela, que abaixara na parede oposta de onde estávamos sentados, a imagem da configuração química do silício para que pudesse ilustrar o que estava dizendo.
– A figura na tela – apontara com o dedo em riste – repetida centenas de vezes é o melhor que o silício pode fazer para encadear as moléculas juntas e é por isso que são criaturas assexuadas apesar de seu órgão reprodutor ser interno
Elisa rapidamente desenhou em seu leitor, toscamente, a configuração química do silício conforme se lembrava que estava na tela e mostrou a Muai que olhou demoradamente sacudindo a cabeça como se estivesse entendendo.
CH CH CH
3 3 3
O – SI – SI – O – SI – O
CH CH CH
3 3 3
– Eles fecundam o próprio corpo e dão a luz a um filho exatamente igual a si mesmo. Isto não quer dizer que são idênticos. Cada um tem sua personalidade sua ponta na cabeça e sua tatuagem únicas. E uma alma individual que eles acreditam ser a responsável por essas diferenças.
– A alimentação do rebento é um silicone que nasce do seio, que surge na fase de gestação, e desaparece totalmente após a amamentação
– Vocês devem estar imaginando que por eles serem assexuados vivam sozinhos. Não. Muito pelo contrário. Eles têm a mesma compulsão em se juntar que nós humanos. Vivem em comunidades ricas e complexas. Casam-se e compartilham a vida e as tarefas como nós. A única diferença é que eles não têm o primeiro filho, mas os primeiros filhos. Os dois dão a luz cinqüenta e duas semanas após o casamento – pela contagem de tempo da terra – ou quando iniciam o contato com o outro estimulando os órgãos reprodutores.
– Então eles não têm problema – alguém falou lá do fundo fazendo todos gargalhar e bater na poltrona.
– È verdade – respondera – mas com certeza devem ter outros problemas não relacionados com o sexo. Nossos pesquisadores dizem que são extremamente sensíveis. Talvez por terem o corpo mais frágil do que o nosso.
– Por causa de sua compleição frágil – conseqüência de sua composição química – usam um exoesqueleto colante parcamente colorido de sílica metalizada com sua cor tendendo sempre para o cinza azulado se diferenciando pouco da cor cinza profundo de seus corpos, que os cobre totalmente deixando de fora somente o rosto. E por cima vestimentas com desenhos surreais mais como ornamento do que como proteção é jogada sobre seu corpo criando uma imagem menos árida. Provavelmente enxergam cores que nós não distinguimos e por isso não compreendemos alguns de seus códigos sociais.
– O inferno que percebemos no planeta – como verão – não deve ser levado em consideração. Imaginem um alienígena chegando á terra o que eles veriam? Veriam criaturas animalescas mergulhadas em oxigênio sujo de fumaça com uma umidade elevada e uma visibilidade quase igual a zero- enxergando somente alguns metros em torno de si – sendo bombardeadas com ventos e detritos numa atmosfera corrosiva. Seria um inferno. Se não tiverem capacidade de enxergar o mesmo comprimento de onda que o nosso olho enxerga não verá a beleza das cores que os poetas cantam há séculos e que buscamos nos finais de semana… Tudo é relativo, senhores. E isso fica cada vez mais evidente quando saímos para o universo e nos deparamos com outras civilizações.
– Sem anunciar o som de uma campainha encheu o ambiente deixando todos atentos a voz que surgira em seguida prenunciando a chegada ao nosso destino. Avisara para aqueles que estavam em pé que deveriam se sentar e seguindo meu próprio conselho sentei-me na poltrona, apertei o cinto de segurança e esperei a entrada da nave na atmosfera de Damnatio. Todos olhavam pela janela curiosos quando surgira em nosso campo de visão a cidade cercada por morros avermelhados exalando fumaça e com foco de incêndio aqui e ali. A pista do espaçoporto ladeada por claridades vindas não se sabia de onde iluminava a pista que penetrava na escuridão desaparecendo de vista. Havíamos chegado no momento mais fresco daquele mundo infernal quando o sol iluminava o outro lado deixando o hemisfério onde aportamos mergulhado na noite escura. A espaçonave taxiou e parou repentinamente. Ficamos em silêncio aguardando…
Continua no próximo capítulo…
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