Tia Zulmira é uma dessas criaturas que acontecem: saiu de Vila Isabel, onde nasceu, por não achar nada bonito o monumento a Noel Rosa. Passou anos e anos em Paris, dividindo quase o seu tempo entre o Follies Bergère, onde era vedete, e a Sorbonne, onde era um crânio. Casou-se várias vezes, deslumbrou a Europa, foi correspondente do Times na Jamaica, colaborou com Madame Curie, brigou nos áureos tempos com Darwin, por causa de um macaco, ensinou dança a Nijinski, relatividade a Einstein, psicanálise a Freud, automobilismo ao argentino Fangio, tourear a Dominguín, cinema a Chaplin, e deu algumas dicas para o doutor Salk. Vivia, já velha, mas sempre sapiente, num casarão da Boca do Mato, fazendo pastéis que um sobrinho vendia na estação do Méier. Não tinha papas na língua e, entre muitas outras coisas, detestava mulher gorda em garupa de lambreta.
Era assim que escritores e afamados artistas se referiam à douta longeva nos idos de 1960. Quem imaginaria que, esse ano, a macróbia dama estaria entre os terroristas presos no infausto 8 de janeiro, da Praça dos Três Poderes?
Pois esteva lá, de corpo e alma (mais alma do que corpo) e ainda acompanhada de Rosamundo. Tia Zulmira colaborou pessoalmente com as depredações nos palácios, mas o filho de sua lavadeira, distraído como quê, entrou no quebra-quebra acreditando piamente que a madrinha o levara a um show de rock, onde a ideia era “quebrar tudo”. Foi assim que chutou a cadeira do ministro do STF, furou o quadro de Di Cavalcanti e escangalhou obras do período imperial.
Na chegada à delegacia, Tia Zulmira já avisou aos policiais que, se a vacinassem contra Covid, acionaria um embaixador italiano, primo de Silvio Berlusconi, seu ex-amante. A coisa pegaria fogo.
Rosamundo seguia sem desconfiar que estava em cana por atentado ao patrimônio nacional. Ao chegar na Papuda, ouvindo o nome do presídio, achou que era um boteco da Ceilândia, ordenou cerveja gelada e um prato de tremoços.
A permanência dos dois atrás das grades, todavia, durou pouco.
Primo Altamirando logo que soube do mistifório se dirigiu no carro oficial à prisão. Em inícios do governo Temer, Mirinho fechara seu escritório de corretagem para contrabando, tráfico de entorpecentes e prostituição em massa. Candidatou-se à Câmara. Foi eleito com apreciável votação graças ao apoio do Gabinete do Ódio, igrejas pentecostais e ainda do Estado Islâmico.
Desde então, Mirinho é influente parlamentar e poderosa liderança do Centrão. Somente ele poderia dar um jeito naquela situação vexaminosa vivida pela famosa parenta.
Assim foi. Após um rápido telefonema ao presidente da Câmara, e uma conversa com o Procurador-Geral da República, Tia Zulmira saiu da Colmeia. Com a justificativa de ser “centenária fragilizada, em situação de vulnerabilidade, carecendo de proteção à sua integralidade moral, dignidade humana e autonomia”.
Rosamundo infelizmente continua na Papuda. Inclusive, bastante aborrecido por, até agora, não terem lhe servido nem a cerveja, nem o tira-gosto.
Stanislaw Ponte Preta, que em janeiro de 2023 completaria 100 anos, não acreditaria em que se transformaram seus contraparentes.
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