O chimarrão quente descia pela garganta. A solidão também. Sempre descia. Como as águas do Guaíba. Ou outro qualquer rio furioso do Rio Grande.
Mas o sorriso encravado em uma barba branca e amarelada persistia. Como as palavras do hino. Não era homem chegado a essas coisas de bandeira e tal, mas meio que cantarolava algumas estrofes.
O tempo. Sempre o tempo. Essa coisa fazia com que a carne endurecesse, mesmo que lá de vez em quando a carcaça ressequida vazasse uma lagrimazinha. Coisa de velho, pensava. Uma mão enrugada e ossuda tentando “calar” a lágrima, arranhava em calos o dobrar e desdobrar da pele de um rosto resiliente.
Fechava os olhos , o tremor da casa assustava. Os outros. Que gritavam de longe. Ele lembrava. Lembrava da ausência de tempo na sua carne. De outras águas e do avô. De sentar em barrancos. Traíras enormes e risadas.
A geladeira boiava. O pouco de comida que havia girava pela cozinha.
É, ele pensava. O Rio Grande tinha mudado. Antes eram os campos sem fim. Lembrava ainda. Do barulho das vacas. Dos cães.
Gostava da cachorrada correndo na volta do cavalo. Ainda lembrava como era montar. Coisa boa! A agilidade e força do animal fluídas nele mesmo. O espaço e tempo diminuindo. O cheiro do suor. Um ventinho. Sorriu. Mais um gole de amargura. Quente. Era assim que gostava. Era uma escolha. Não havia tristeza. Nem dele, nem dos outros. Na vida, a vida é que ditava as regras. Pensava. Ou pelo menos ele. Ele não conseguira saltar para fora da corredeira da vida. Um radinho de pilha preso na parede com dois pregos e um arame cantarolava uma musiquinha gauchesca de fundo.
Ele observava o mar de lama. Devia se assustar? Sorriu. A idade e a solidão eram parcerias desalmadas. Uma tirava o brilho dos olhos, a o outra tirava a vontade de estar com os outros. Só. “Sólito” e Deus.
Peito na água. Gelada. O mundo chorando. E a casa. A casa que o seu avô morou, que seu pai morou. Chalé de madeira velha assim como ele. Começava a tremer. Madeira e carne. Velha.
Lá longe. Via pela janela. Pessoas acenavam. Sabia que gritavam. O rio era tudo. Tudo era só o rio. O Estado. O rio, o velho, e a casa indo.
Do chão a água levantou. Casa e velho. Velho e casa. E a musiquinha. E o hino cantarolado. E barco a casa era. Afundando. E o velho e o chimarrão na janela. Um sorriso. Uma mão fortemente acorrentada na janela, outra na cuia.
Pensava nos amores. Alguns. Marias, Isadoras, Carminhas… Memórias carinhosas das mulheres que passaram. Que ainda ficam. Nunca foi romântico. Nem sabe bem o que é isso. Não há romantismo em mãos ossudas e pelancudas. Mas nem sempre foram assim.
Pensando agora, tinha a impressão que sempre fora um velho. Sorriu. Queria tomar o mate, mas o balanço da casa não deixava. Tinha “pena” também de tomar o último chimarrão. Água quentinha e boa. Só quem apreciava um bom chimarrão saberia entender.
Um cavalo. A casa. O cavalo na casa. O velho gargalhava. Não podia ser diferente. “Deus é grande”. E uma gargalhada gostosa e alegre quase que disputou espaço entre a chuva, e o mover pelo rio de toda a rua, da cidade e as dores, dos gritos, do lixo, dos bichos, dos barcos, e dos jet-skis, e dos moveis flutuando, e dos rostos em pânico, e do barulho dos helicópteros, e destruição, e o barro, e o cheiro de podre, e a incompetência dos gestores, e a hipocrisia dos políticos. E as fotografias morrendo afogadas. E a memória agonizante.
Dizem que foi assim que foi. Nem foto no jornal. Só comentário e conversa e prosa. Que a casa sumiu no rio enorme e grande. Cavalo surfando a casa. O velho agarrado na janela e tomando chimarrão. E rindo. E chorando. E chorando. E rindo.
Tudo água. Tudo rio. Tudo Rio Grande.
Lindo texto descrevendo um momento, um instante da vida e como ela é. A vida ante uma tragédia imprevista/prevista arrastando tudo. O Rio Grande continua sendo Grande e tudo isso vai passar.
Solidariedade aos nossos irmãos do sul e obrigada por compartilhar tudo isso.
Valeu Beth. A gente vai indo…sempre.