Vidas e(m) arte[i]
Para Emanuel Rezende de Araújo, professor de Artes da Rede de Ensino de São Sebastião
Por Beth Brait Alvim
Este texto poderia começar de várias formas. Como todos os textos. Esta é apenas uma delas, e poderia estar no fim. Caso queiram, invertam, inventem, comecem pelo fim…
Aí vai:
Lembro dos gestos ritmados, cadenciados, do olhar para além do que nos circundava. Poderia ser apenas uma apresentação de coral de escola, dessas que já não me encantavam nem quando eu era professora, até porque os jovens (no caso) apenas respondiam autômatos aos mandos do programa a ser cumprido.
Aqui era um coral em Libras.
Se prestarmos bem atenção nos signos das libras, seremos encantados por eles. O jovem negro, magro, da escola de periferia do Município de São Sebastião me encantou. Eu certamente me encantaria por outros dali, ou por todos. Afinal, era um coral de libras numa escola de periferia. Mas parece que chega um tempo na vida da gente em que captamos sequiosamente só o que nos encanta ao ponto de conversar com nossa alma, fazê-la tremer, nos virar de ponta cabeça. No caso, foi esse menino. As libras lhe percorriam o corpo todo. Uma poesia sem o ruído das palavras.
Possivelmente eu já estivesse tomada, virada, encantada.
Acabara de sair de uma exposição, na sala ao lado do pátio onde se apresentou o coral. E parecia que tinha atravessado um portal.
Ao notar os tapumes verdes que vedavam as janelas, não imaginava que entraria num espaço mágico. Nas paredes, telas maravilhosas com ilustrações de livros maravilhosos para crianças e jovens. Repito maravilhosos porque maravilhar hoje em dia é raro. Em pequenas mesas centrais, não simétricas, livros feitos por alunos. Abajures delicados jogavam luz e sombra fluidas sobre as obras à disposição do manuseio.[ii]
Toquei em todas elas, abri, li, abri de novo, li de novo. Indescritível. Várias formas de editoração, impressão, aplicação de cores e colagens, dobraduras, textos. Na lousa verde, citações de Mario Quintana.
Em um toca cds dos mais simples, depoimentos dos alunos artistas gravados. Vozes sem impostações, leves, embora algumas obras já mostrassem o peso de viver.
Sobre um suporte, uma máquina de escrever que parecia viva e quente, com seu papel prestes a datilografar, cúmplice, as obras vidas.
Uma exposição de arte[iii]. Arte de jovens, sempre tão criticados, ressurgem emoldurados de seus sonhos e aflições, transfigurados em arte. Reconhecidos e revelados naquele corte de espaço e tempo, expostos em uma galeria pra ninguém botar defeito, com iluminação, ar condicionado, som de mar ao fundo….
Vidas e(m) arte. Ação necessária e uma aposta urgente em todas as escolas, em todos os espaços.
Poderia começar assim este texto:
Conheci, nestes nossos dias vazios, uma escola municipal de periferia que ensina libras e que tem uma galeria de arte com uma exposição de livros feitos pelos alunos.
Meu amigo, professor de artes da escola, me levou para apreciar a exposição.
Ao notar os tapumes verdes que vedavam as janelas, não imaginava que entraria num espaço mágico. …
http://www.saosebastiao.sp.gov.br/noticia.asp?id=N3182017174614
[i] Visita à Escola Municipal Cinthya Cliquet Luciano, exposição Eu e o Livro, 29/08/2018.
[ii] A Exposição Eu e o Livro é fruto de oficinas de leitura e texto, ilustração e encadernação, ministrada por convidadas e Isabel Galvanese, multiartista e ilustradora. Na exposição, telas e livros ilustrados por ela, com histórias e temas da região, dialogam com as criações dos alunos.
[iii] A galeria é programada de forma compartilhada por artistas do litoral norte, escola e professores, e visitada por artistas, amigos, familiares, professores, alunos, e uma ilustre desconhecida como eu, que sempre acreditou que a arte é o único meio de restauro do ser.
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