VIOLETA – de Isabel Allende

Data de leitura:                       01-01-2024 a 06-01-2024                             Nome: Luísa FRESTA

Ficha de leitura

Título:                                      VIOLETA

Autor:                                       Isabel Allende[1]

Editora:                                    Porto Editora ©

Coleção/ Edição:                    –

Ano de publicação:                 2023

Género literário:                      Romance

Tradução:                                Carla Ribeiro

Número de páginas:               360

 

Resumo:

Mais um grande romance de Isabel Allende, uma autora sobre a qual é difícil dizermos algo de novo, tendo em conta a projeção mundial dos seus romances, traduzidos para cerca de 40 idiomas. É realmente um dos ícones da literatura mundial, atinge records de vendas, foi amplamente premiada em vários países e por diversas obras. A escritora é também conhecida pela sua atividade como defensora dos direitos humanos e apoia, designadamente, mulheres, em todo o mundo, através da fundação que criou com o seu nome (Fundação Isabel Allende).

O olhar do leitor é atraído pelo nome de uma grande romancista, mas note-se que ela não é uma grande escritora por ser famosa, mas é famosa por se ter afirmado como uma grande romancista, o que legitima o nosso interesse. Posto isto, é sempre possível termos uma opinião pessoal sobre o que escreve. O romance Violeta é contado pela narradora homónima, como se fosse uma hipotética e extensa carta a Camilo, cuja relação com a narradora não é clara desde o início, mas a quem está ligada por uma cumplicidade visceral e cultivada por um entendimento profundo. Essa narrativa percorre um século, desde o nascimento de Violeta até ao fim da sua vida, entre duas pandemias.

Pelo meio, Violeta fala dos seus amores e descendência, da família de origem, das adversidades que enfrentou e os desgostos dilacerantes aos quais sobreviveu. Da casa grande das camélias, que representa a sua infância e o cenário do início do romance. Tudo isto com um enquadramento histórico notável, referindo vários eventos marcantes da história mundial, que permitem reforçar o cunho bastante realista da narrativa. Isabel Allende, apesar de ser também jornalista, resiste à tentação de relatar demasiados pormenores que desviem o leitor das narrativas centrais: aí está o romance e daí advém o grande prazer de lê-lo. Temos ficção e circunstâncias históricas, momentos coletivos da sociedade, romantismo e realismo na dose certa. Porém, acontecimentos como a pneumónica de 1918-1919 (influenza), as duas Grandes Guerras, o crash da bolsa de 1929 (a Bolsa de Valores dos EUA), as sangrentas ditaduras de alguns países da América do Sul instauradas em resultado de golpes militares durante o século XX, a Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, em 1989, a guerra na R.D.C. (com o seu macabro cortejo de grupos armados e a existência de crianças-soldado, obrigadas a terríveis rituais de lealdade, as atrocidades cometidas contra mulheres…)  e até a pandemia do novo coronavírus, já no século XXI, são referidas muito a propósito e com o necessário detalhe: estas menções tornam mais visível o denso esqueleto histórico da narrativa e situam-na inequivocamente no eixo do tempo.

Violeta viveu e recordou cem anos, sempre com lucidez, evidenciando as relações familiares, o contexto social, a sua origem e cultura, na primeira parte da narrativa[2]. Provém de uma família abastada, que se mantém ilesa durante a dita gripe espanhola de 1918, mas sucumbe, como uma construção de cartas, à volatilidade da economia, à voracidade dos mercados, especulação financeira e colapso de 1929, como muitas outras famílias, bancos e empresas. O fenómeno vai destruindo o tecido económico em cascata. Na sua família as repercussões são devastadoras e a partir daí a sua vida seguirá um rumo diferente.  A estrutura familiar fragmenta-se e Violeta, juntamente com o seu irmão mais velho, a Mãe e duas tias, assim como outras figuras – a quem está unida por laços de convivência, solidariedade, uma sólida amizade e confiança total – passam a constituir o núcleo duro de outras ramificações familiares muito expressivas nas décadas seguintes.

A família de Violeta muda de terra, de rotinas, de planos, de expetativas. Graças a um excecional acolhimento conseguem integrar-se e edificar uma existência extraordinária sobre outras bases, mais ligadas ao ar livre, à vida rural e comunitária. Nem tudo no romance é sobre Violeta, mas sobre os que lhe são próximos, o que observa, intui, escuta e aprende, as pessoas que conhece e se tornam imprescindíveis. A nossa heroína passa a ter uma Gaiola, na adolescência, que mais uma vez traz a lume a importância dos espaços na narrativa e simboliza uma forma de independência. O romance atravessa várias décadas, pelo que se nasce, se cresce e se envelhece. Algumas figuras acabam por desaparecer. Senti necessidade de esboçar árvores genealógicas que incluem a família alargada e que partilharei com os leitores.

Em que país estamos? O romance é omisso sobre isso, mencionando apenas nomes como Sacramento, Nahuel e uma propriedade agrícola, Santa Clara. De resto, outros locais servem de cenário às peripécias das personagens, esses sim, mencionados com clareza, e que serão também aqui enumerados. Tomei o hábito de mapear os locais e as épocas: espero que esse tique não se torne fastidioso para o leitor. Se assim for, basta ignorar essas partes.

Neste romance o leitor ouvirá falar de amor, de desejo e de violência, nomeadamente aquela que ocorre na intimidade do lar e que, em tempos, em certos locais, foi (e ainda é) considerada assunto do foro privado. Violeta relata também as relações à Máfia de um homem que foi importante na sua vida e que a manteve numa espécie de cativeiro psicológico. Esse homem privou com as elites das ditaduras, manteve-se imune a quaisquer dilemas éticos, estabelecendo relações duvidosas de interdependência com a escória da humanidade. Para ele só contava o prazer imediato, o luxo, a aventura e uma certa noção de liberdade e libertinagem, que implicavam risco e destreza física. Outras pessoas povoaram a vida de Violeta, para além das relações de sangue. Conheceu também homens íntegros, de boa índole, com quem pôde ter relações verdadeiramente adultas, duradouras, amigáveis, de amor, afeto e respeito, incluindo o respeito devido às liberdades individuais e ao espaço vital. Esses homens corporizam a noção de amante, marido, companheiro e confidente e determinam as fronteiras do comportamento humano, que tanto atrai como repele. As relações podem ser espaço de abrigo e plenitude, ou, ao invés disso, uma armadilha ou ameaça permanente.

As personagens de Violeta não são lineares: podem assumir o papel de chantagistas e lidar com o submundo, ter um pé na ilegalidade, valendo-se de expedientes vários, sem necessariamente ser pessoas malformadas ou mal-intencionadas. Talvez se tenham apenas habituado a viver num mundo imperfeito, assimétrico, cheio de lacunas e desequilíbrios, e, em inúmeras circunstâncias da vida, se possam mostrar humanas, solidárias, afetuosas.

Violeta leva-nos a conhecer variadas geografias e modos de viver, moldados também pela própria natureza. Para o leitor que gosta da intriga política e acompanhou os períodos mais assustadores da história do Chile e da Argentina, o romance oferece-lhe variadíssimos motivos de interesse, recorrendo a descrições muito duras, reflexo da extrema lucidez da narradora, que espelham as tremendas injustiças, a corrupção, a crueldade, a prepotência e o cinismo que conduziram ao encarceramento, à tortura e à morte de dezenas de milhares de pessoas nesses países. Muitas famílias ficaram enlutadas e destruídas, sem sequer poderem chorar os seus mortos com dignidade, não esquecendo os desaparecidos, que se esfumaram no tempo. Os mais afortunados escaparam com vida, mas foram empurrados para uma fuga precipitada, exílio e desvinculação forçada da terra-mãe.

Há ainda a assinalar, neste romance, a religiosidade ou espiritualidade das populações, nomeadamente a dos indígenas, nativos americanos, que têm rituais próprios na abordagem à doença física e espiritual, rituais de transição para a morte e de homenagem aos mortos. Quanto à fé e aos valores cristãos, a narradora deixa bem clara a sua posição através da postura de Camilo, que encarna uma forma inspiradora de devoção e de amor ao próximo, mesmo diante das maiores atrocidades e brutalidade. O romance refere abusos e práticas criminosas de representantes da Igreja, traições, cobardia, cumplicidade com os algozes daqueles que se rebelavam ou se manifestavam pacificamente contra o poder; mas também a postura exemplar de muitos sacerdotes e freiras que, durante a ditadura, pagaram com a vida a defesa dos valores humanos, em resultado de uma postura ética, muito arriscada e incrivelmente corajosa, que poupou a vida e salvou da tortura muitos concidadãos.

No mais, será o leitor a julgar este imenso romance épico. Delicie-se.

Retrato da autora, por Luísa Fresta (2025)

 

[1] Biografia da autora: “Isabel Allende nasceu em 1942, no Peru. Passou a primeira infância no Chile e viveu em vários lugares na adolescência e juventude. Depois do golpe militar de 1973 no Chile, exilou-se na Venezuela e, desde 1987, vive como imigrante na Califórnia. Define-se como “eterna estrangeira”.
Iniciou a carreira de jornalista, no Chile e na Venezuela.
Em 1982, o seu primeiro romance, A casa dos espíritos, transformou-se num dos míticos livros da literatura latino-americana. A este romance seguiram-se muitos outros, alcançando sucesso internacional. A sua obra foi traduzida em 40 línguas e vendeu mais de 75 milhões de exemplares, sendo a escritora mais lida em língua espanhola.
Recebeu mais de 60 prémios internacionais, entre os quais o Prémio Nacional de Literatura do Chile, em 2010, o Prémio Hans Christian Andersen, na Dinamarca, em 2012, pela sua trilogia As memórias da águia e do jaguar, e a Medalha da Liberdade, nos Estados Unidos, a mais alta distinção civil, em 2014.
Em 2018, Isabel Allende tornou-se a primeira escritora de língua espanhola premiada com a medalha de honra do National Book Award, nos Estados Unidos, pelo seu enorme contributo para o mundo das letras.”

Fonte: https://www.wook.pt/autor/isabel-allende/7870 (e badana do livro)

[2] A narrativa divide-se em quatro partes: O Desterro (1920-1940); A Paixão (1940-1960); Os Ausentes (1960-1983) e Renascer (1983-2020).

 

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Sobre Luisa Fresta 39 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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