CAMINHOS OCULTOS
Naquele labirinto acobreado descobriu caminhos novos, aplainados recentemente pela equipa da Junta. Finalmente o monte de entulho tinha desaparecido e em seu lugar estava agora um pequeno jardim acolhedor, com corredores sinuosos de areia que, artisticamente, serpenteavam entre bancos novinhos em folha e arbustos recém-plantados, cercados de suportes metálicos e de cuidados. Enormes letras estilizadas anunciavam o limite entre dois concelhos e quase que apetecia tirar uma foto com um pé em cada um deles: era uma forma de sentir a terra de dois mundos, reconhecendo uma fronteira aleatória desenhada por mão humana.
Ninguém queria ser o primeiro a sentar-se em tão mágico recanto. Nem os vândalos se atreviam a inaugurá-lo, nem as crianças, posto que o espaço não possuía estruturas de lazer; nem idosos, visto que aqueles escassos metros quadrados não ofereciam ainda a sombra das árvores crescidas que viriam a viver ali tempos depois.
Nesse dia ela atreveu-se e, quase a medo, acomodou-se. Primeiro com cautela, não fosse a tinta ainda estar fresca, avaliando a exposição de se sentar num jardim de esquina, onde o trânsito passava veloz e a rasar a areia dourada. Abriu um romance e gozou os primeiros raios de sol, abstraindo-se do resto do mundo. Um homem abordou-a sem cerimónia:
– Desculpe, posso-me sentar ao seu lado?
– Claro, o jardim é público – respondeu ela, algo desconcertada, tentando voltar à sua leitura sem atropelos.
Ele tomou fôlego e depois ensaiou uma conversa casual.
– Costuma cá vir?
– Bem, na verdade, não…e sabe porquê? Porque o parque só foi aberto ao público hoje! Mas diga-me, deseja mais alguma coisa?
O homem avançou alguns centímetros e fez-lhe a proposta invulgar:
– Gostava de conversar consigo. Conheço um sítio simpático aqui perto e…mas, desculpe, ainda não me apresentei. Eu fui presidente da Junta e esta obra foi concebida durante o meu mandato. Sempre apostei neste espaço, contra a opinião dos meus opositores que, finalmente, recuperaram a ideia.
– E o senhor é?
– Barros. José de Barros.
Aos poucos foi recordando José, que anos atrás se passeava ali pelas manhãs inteirando-se do andamento das obras e cumprimentando efusivamente os transeuntes. Era um tipo discreto, costumava usar uma boina de fazenda e um blusão de camurça velha, e o seu andar abaulado conferia-lhe o aspeto de um cavaleiro, um pouco bamboleante, sem, no entanto, lhe retirar o encanto que os anos lhe iam acrescentando. Ela tinha sido uma apoiante fervorosa e apreciava sinceramente o seu engajamento desprendido e o seu estilo utópico, entre o barroco e o surrealista.
Mas o homem que estava agora diante de si era quase um idoso, de olhos brilhando em tons indefinidos, visivelmente mais magro, e apenas a boina escura tombando sobre a testa o tornava reconhecível.
– O meu nome é Lucinda – condescendeu. – Sei quem o senhor é. É provável que não se lembre de mim mas já nos cruzámos algumas vezes.
Deu por si a ouvir confidências daquele estranho, de quem conhecia tanto publicamente. Passaram-se horas e, entretanto, o parque foi-se enchendo de crianças ruidosas sem que se apercebessem disso. Uma chuva fina escorria já pela aba da boina de José quando decidiram partir; encontraram abrigo debaixo da varanda de um prédio das redondezas e ali repartiram alguns gomos de tangerina antes de definir que rumo tomar. A casa do presidente era a duzentos metros e a Lucinda pareceu-lhe um atrevimento aceitar o convite que ele não formularia. Por isso acertaram o passo e entraram apenas. José findou-se quinze meses depois desse encontro, depois de lhe ter ensinado o sentido da palavra intimidade.
Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).
Outros livros da autora:
https://www.wook.pt/autor/luisa-fresta/3233769
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