CAMINHOS OCULTOS, um conto de “CONTEXTURAS” (contos de Luísa Fresta e quadros de Armanda Alves)

CAMINHOS OCULTOS

Naquele labirinto acobreado descobriu caminhos novos, aplainados recentemente pela equipa da Junta. Finalmente o monte de entulho tinha desaparecido e em seu lugar estava agora um pequeno jardim acolhedor, com corredores sinuosos de areia que, artisticamente, serpenteavam entre bancos novinhos em folha e arbustos recém-plantados, cercados de suportes metálicos e de cuidados. Enormes letras estilizadas anunciavam o limite entre dois concelhos e quase que apetecia tirar uma foto com um pé em cada um deles: era uma forma de sentir a terra de dois mundos, reconhecendo uma fronteira aleatória desenhada por mão humana.

Ninguém queria ser o primeiro a sentar-se em tão mágico recanto. Nem os vândalos se atreviam a inaugurá-lo, nem as crianças, posto que o espaço não possuía estruturas de lazer; nem idosos, visto que aqueles escassos metros quadrados não ofereciam ainda a sombra das árvores crescidas que viriam a viver ali tempos depois.

Nesse dia ela atreveu-se e, quase a medo, acomodou-se. Primeiro com cautela, não fosse a tinta ainda estar fresca, avaliando a exposição de se sentar num jardim de esquina, onde o trânsito passava veloz e a rasar a areia dourada. Abriu um romance e gozou os primeiros raios de sol, abstraindo-se do resto do mundo. Um homem abordou-a sem cerimónia:

– Desculpe, posso-me sentar ao seu lado?

– Claro, o jardim é público – respondeu ela, algo desconcertada, tentando voltar à sua leitura sem atropelos.

Ele tomou fôlego e depois ensaiou uma conversa casual.

– Costuma cá vir?

– Bem, na verdade, não…e sabe porquê? Porque o parque só foi aberto ao público hoje! Mas diga-me, deseja mais alguma coisa?

O homem avançou alguns centímetros e fez-lhe a proposta invulgar:

– Gostava de conversar consigo. Conheço um sítio simpático aqui perto e…mas, desculpe, ainda não me apresentei. Eu fui presidente da Junta e esta obra foi concebida durante o meu mandato. Sempre apostei neste espaço, contra a opinião dos meus opositores que, finalmente, recuperaram a ideia.

– E o senhor é?

– Barros. José de Barros.

Aos poucos foi recordando José, que anos atrás se passeava ali pelas manhãs inteirando-se do andamento das obras e cumprimentando efusivamente os transeuntes. Era um tipo discreto, costumava usar uma boina de fazenda e um blusão de camurça velha, e o seu andar abaulado conferia-lhe o aspeto de um cavaleiro, um pouco bamboleante, sem, no entanto, lhe retirar o encanto que os anos lhe iam acrescentando. Ela tinha sido uma apoiante fervorosa e apreciava sinceramente o seu engajamento desprendido e o seu estilo utópico, entre o barroco e o surrealista.

Mas o homem que estava agora diante de si era quase um idoso, de olhos brilhando em tons indefinidos, visivelmente mais magro, e apenas a boina escura tombando sobre a testa o tornava reconhecível.

– O meu nome é Lucinda – condescendeu. – Sei quem o senhor é. É provável que não se lembre de mim mas já nos cruzámos algumas vezes.

Deu por si a ouvir confidências daquele estranho, de quem conhecia tanto publicamente. Passaram-se horas e, entretanto, o parque foi-se enchendo de crianças ruidosas sem que se apercebessem disso. Uma chuva fina escorria já pela aba da boina de José quando decidiram partir; encontraram abrigo debaixo da varanda de um prédio das redondezas e ali repartiram alguns gomos de tangerina antes de definir que rumo tomar. A casa do presidente era a duzentos metros e a Lucinda pareceu-lhe um atrevimento aceitar o convite que ele não formularia. Por isso acertaram o passo e entraram apenas. José findou-se quinze meses depois desse encontro, depois de lhe ter ensinado o sentido da palavra intimidade.

 

Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).

 

Outros livros da autora:

https://www.wook.pt/autor/luisa-fresta/3233769

 

 

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*