A leveza poética em A inevitável fraqueza da carne, de Wilson Gorj

Por Alexandra Vieira de Almeida*

Para Italo Calvino, a leveza é uma das características importantes que permeiam a obra literária e, por meio disso, Wilson Gorj, em seu romance de estreia, encanta os seus leitores com algo que não é indigesto, insalubre ou extremamente pesado. O teórico italiano descreve tal qualidade em Seis propostas para o próximo milênio, entendendo o tema crucial da leveza para o terceiro milênio e cita o poeta Paul Valéry para exemplificar essa temática tão necessária para os tempos atuais: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”.

O livro de Wilson Gorj, A inevitável fraqueza da carne, utiliza metáforas para falar das paixões humanas, como o animal jaguatirica que teima em querer destroçar as galinhas da chácara que o protagonista Carlos ganha como herança do pai que faleceu. Carlos é casado com Luísa há quatro anos, que vislumbra grandes possibilidades nessa herança para o casamento deles, embora não seja assim dessa forma, o que frustra os sonhos dela. O personagem principal se vê às voltas com seus desejos e paixões, como a traição, pois se encanta pela filha do caseiro, seu Romildo. O nome dela é Maya, cuja grande beleza atrai Carlos perdidamente. No entanto, seus impulsos são marcados, por vezes, pela contenção ao pensar no passado de seu pai que traiu sua mãe, causando um rompimento dele com o pai na infância. O animal que percorre a narrativa, como está apresentado na capa do livro, é uma imagem do lado selvagem, implícito no início da narração e, ao longo do livro, se solta levemente na relação entre ele e Maya. Esse nome não é gratuito, pois, na religião hinduísta e no budismo, maya é ilusão.

Carlos vê Maya com um livro de Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, e para se aproximar da moça decide procurar em sua casa, na cidade, fora do campo, onde mora com a esposa, o seu exemplar, para criar conversa sobre a obra. O livro existencialista e filosófico trata do tema erotismo por meio de uma linguagem mais difícil, desafiando o leitor, já em A inevitável fraqueza da carne, o tema é tratado de forma antropofágica como no bom modernismo, deglutida por Wilson Gorj, num tom mais ameno e psicológico, sem pretensões mais complexas. Nem todo livro tem de ter uma grande complexidade para ser bom, mas pode ser uma obra com uma boa história bem contada, com temas que sejam trabalhados com certa densidade, sem ir a muito adensamento. Isso o escritor aqui faz muito bem com certa propensão a ir às zonas subterrâneas, escrevendo sobre traição, paixões, desejos, medos, morte, doença, entre outros, de maneira aprofundada e psicologicamente trabalhada, pois há questionamentos do narrador e do personagem, cujas vozes, em certos momentos, se confundem, principalmente na segunda parte da narração. Nessa segunda parte, de forma rica e ambígua, o narrador muda na primeira parte da terceira pessoa para a primeira pessoa. Uma história bem contada vale mais que mil palavras, às vezes, de intensa filosofia, porém não bem urdida, o que não é o caso de Milan Kundera, escritor de grande estirpe literária, que serve como homenagem no romance de Gorj, tanto é assim que o título deste é uma referência àquele. As histórias bem contadas se perderam muito, como escreveu o ensaísta Walter Benjamin no seu texto “O narrador”, elogiando muito o escritor russo Leskov, que sabia narrar excelentes histórias.

Citemos a passagem do animal selvagem que aparece ao longo do romance de Wilson Gorj:

“Os cães do caseiro, na casa ao lado, latiam sem parar. No galinheiro, as aves também pareciam alvoroçadas. Ele apontou a lanterna naquela direção e teve um sobressalto: a luz devolveu dois olhos vermelhos olhando fixos para ele. […] Os dois, homem e felino, ficaram se mirando por um tempo […] Como nas ocasiões anteriores, o facho da lanterna tinha o efeito de inibir seus movimentos, deixando-a sem ação imediata: as patas dianteiras já tocavam o grosso galho que se projetava sobre o muro. Ela virou a cabeça um pouco para trás […] e, saltando sobre o galho, avançou para dentro da árvore engolida pela escuridão.”

Os elementos eróticos ainda estão escondidos na escuridão, as paixões são mais contidas, depois, avançam com maior liberdade. No encontro erótico entre Maya e Carlos, no riacho, surge um animal, um carcará, que é apontado por ela antes de se banharem. O animal é o símbolo selvagem do desejo reprimido, que, no texto citado, permanecia ainda na escuridão. Os animais comparecem em vários momentos da narrativa representando o lado animalizante do humano, seus impulsos, tensões e pulsões, como a boa psicologia freudiana explicaria e que aqui tem sua representação mais simbólica. Há sonhos em que aparecem metamorfoses animalizantes da personagem, revelando, assim, a mescla dos sonhos e devaneios com a realidade e vice-versa. Como na interpretação dos sonhos de Freud, os sonhos na obra explicam muitas coisas inacabadas na história vertiginosa de Gorj. E a poesia é o elemento atenuante e romântico para sublimar esses desejos mais plenos e selvagens do humano. Em vários momentos do romance, Wilson mescla a prosa e a poesia, dando leveza aos contornos mais subterrâneos da história.

A mãe de Carlos, internada num asilo por conta do Mal de Alzheimer, merece atenção do filho, que demostra pena por ela e aversão ao pai pela traição. Há, contudo, um conflito, ele, por ironia do destino, é pego na mesma dimensão viciosa do pai. Por vezes, o personagem se lembra do pai e da mãe e, por vezes, dá asas à liberdade do desejo sem questionar, só agir. A ação, sem se deter em pensamentos internos, o faz adentrar na paixão desmedida. E a mãe de Maya parece ser a voz da reprovação à que a filha não dá atenção, pois se vê como adulta e plena de sua própria independência nos seus 23 anos. Carlos, um contador, se vê com problemas de entendimento com a esposa Luísa. Ele guarda um segredo que deseja revelar à esposa, os leitores saberão quando lerem o romance genial de Wilson, que me captou e me absorveu logo de início, com sua mistura entre o biográfico e o ficcional, a tal da tão criticada autoficção que não deve ser desprezada, pois, se tramada com a qualidade literária de Gorj, não pode ser duramente deixada de lado.

O tema da autoficção em Gorj é desenvolvido antes e depois da trama. No miolo de seu livro, temos a história contada. No início e no fim, Gorj, magistralmente, faz um jogo literário fascinante, colocando antes da história, um prólogo e, depois, um epílogo, tratando do tema da autoficcionalidade. E no meio, uma história ricamente contada, cujo autor é Carlos, formado em Ciências Contábeis, enquanto tem um amigo que o ajudará a revisar o seu livro, formado em Letras. No prólogo, Carlos e seu amigo se encontram num bar para discutir e, no epílogo, só temos o amigo das Letras relatando como se desenvolveu a escrita do texto literário, tendo, assim, uma mistura entre metaficção e ficção densamente construída, sem as complexidades filosóficas kunderianas, mantendo, porém, a qualidade literária. Os críticos não têm motivos para tal alarde com relação a essa forma de narrativa.

Com relação à mistura entre prosa e poesia, para exemplificar seu lado poético, neste estudo sobre a obra inventiva e plural de Wilson Gorj, cito um trecho em que a poesia erótica, na descrição de Carlos com relação a Maya, deixa um quê de beleza imagética a imantar o texto de originalidade:

“Ela deu outro mergulho muito próximo a ele. O bumbum aflorou à superfície por um instante, duas ilhas que logo afundaram submersas. Sobre suas ondulações, um olhar perdido, à deriva, como um náufrago. Carlos parecia hipnotizado.”

Na segunda parte do romance, é a primeira voz que fala, é Carlos o narrador, porque a narrativa vai se concentrar num amontoado de tensões a partir de uma carta que ele recebe de uma personagem que não me cabe relatar aqui para não se perder a surpresa. O final do texto literário de Wilson Gorj é inusitado, algo inesperado que dá à sua obra um caráter de literariedade muito grande, pois é no nocaute que o livro se faz, e Gorj soube nos nocautear no arremate fatal de seu romance. O brilhantismo de seu livro, realmente, me comoveu e comoverá os seus leitores. Uma salva de palmas para o primeiro romance de Wilson Gorj, que espero que não seja o único, mas o início de uma série de livros, que nos impacte de forma criativa e ímpar como o fez A inevitável fraqueza da carne.

 

Alexandra Vieira de Almeida – escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ)

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