A Maldição

Por Milton T. Mendonça

O calor era intenso, a calçada, lá fora, estalava ao se esticar pela força do trabalho. Os resíduos líquidos impregnados nas cavidades microscópicas evaporavam esquentando ainda mais o quintal cimentado. No quarto fechado, deitado sobre o lençol branco recém lavado, dois corpos dormiam nus. Ao longe, se ouvia vozes de crianças que brincavam despreocupadas. No teto, o ventilador cansado girava sem muito resultado, misturando ao ar estagnado um barulho monótono. O relógio de parede preso sem muito cuidado em cima da prancheta vazia marcava 3h.

Levantei-me da cadeira onde me sentara após atravessar o teto, jogado pelo vento inesperado, grávido de íons, que me apanhara pelas costas, e me aproximei da cama. O que me atraíra? – perguntei curioso. Os rostos nada diziam, eram rostos comuns de pessoas comuns, não as conhecia. Olhei o corpo da jovem mulher que se estendia à minha frente. Tentei tocá-lo mas minhas mãos atravessaram sua carne como uma imagem holográfica. Senti raiva. O homem resmungou algo e a abraçou querendo protegê-la. Sorri sarcástico, era livre para olhar.

Já vira toda perversão que existe no mundo, agora queria apenas olhar a simplicidade. O amor puro era belo e raro. Lembrei-me dos bordéis onde passara muito tempo observando homens e mulheres usando seus corpos para tirar prazer, expiar culpa ou apenas trocá-lo por moeda sonante.

Caminhei por lares de fachada onde seus moradores como predadores insaciáveis caçavam seus parceiros de transgressão nas igrejas. Convivi com homens de sorriso fácil, que sem escrúpulos, pegavam garotinhas ou garotinhos e os seviciavam deixando marcas profundas para toda a vida. Marcas que os levariam inevitavelmente aos bordéis, numa roda viva interminável.

Presenciei muita solidão fora do circulo interminável do sexo e sofrimento. Mulheres e homens que largavam o corpo para se apegar à idéia de algo maior, eram muitas vezes feitos prisioneiros num curral seguro e raso, sendo ordenhados por homens gananciosos.
Presas fáceis de lisonjas e alegrias falsas, onde tudo era proibido.

Estava cansado. Meu desejo era me deitar embaixo de uma árvore frondosa na beira de um lago, e dormir por toda eternidade.

Mas isso não era possível! Fora amaldiçoado e teria que vagar entre os homens e conhecer os seus segredos. Por quanto tempo? Nunca me disseram. Nunca encontrara alguém que me respondesse à mínima pergunta. Eu apenas existia, um caminhante sem destino que compartilhava as dores do mundo.

Olhei os corpos entrelaçados e sorri feliz. O amor é lindo, murmurei, sentindo a pureza, que volátil como era, subia como luz ao se desprender do suor e encher o quarto com seu cheiro e cor tão inebriantes.

Fiquei ali em pé aspirando lentamente o alimento que me dava forças. Meu único momento de paz. Minha eterna busca.
Mas não conseguia compreender o motivo de estar ali, e isso era desesperador. Ensombrecia todo prazer do momento. Tentei raciocinar, mas era tão difícil.

-Por quê? – gritei angustiado.

Fechei os olhos e forcei a mente, precisava me acalmar. Lá fora o calor continuava sufocante. As crianças ainda brincavam, dava para ouvir os gritinhos agudos de alegria. Meu ouvido foi captando os sons ao redor e fui percebendo ao longe passos que se aproximavam nervosos. Uma onda de pânico me atropelou, caí da cadeira. Um frio inesperado percorreu meu corpo quando a porta foi arrombada e me vi entrando com o revolver na mão. O casal acordara assustado e o homem se jogou sobre a mulher. Os tiros ecoaram na minha cabeça como um trovão e me atirou longe. Fui projetado para dentro de uma luz azul-esverdeada e tudo se esclareceu. Desmaiei. Acordei deitado na relva macia, encostado ao tronco dessa imensa sequoia à beira desse grande lago cristalino. O sol está radiante, o ar morno aconchegante me embala. A paz proveniente da compreensão me acaricia e penso na eternidade…vou dormir.

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