A vida das pessoas

Arte de Eduardo Cambuí Junior

 

Sentado na cadeira amarela da sala de porta aberta para a rua e o sol ele pensava na aula que tinha sido uma merda.
Ela arrumava a roupa para parecer mais desejável e nas vitrines da lojas tentava enxergar o rosto através da quase corrida que fazia para não perder o horário do encontro com o namorado. Era a terceira vez que tentavam. Em uma das vitrines parou e viu um rosto triste.
Enquanto falava e respondia algumas perguntas de um repórter local e silenciou por alguns momentos. Teve vontade de chorar, mas engoliu as lágrimas e continuou mentindo descaradamente.
Disse para a amante que ela era a mulher da sua vida, quando chegou em casa, afagou a filha, beijou a testa do filho que corria no pátio atrás de uma bola e procurou a esposa na cozinha, o cheiro da comida era excelente. Abraçou, afagou e beijou: “você é a mulher da minha vida.”
Sentado na calçada ele ia examinando a vítima. Muito alto. Muito forte. Cara de mau. Cara de louco. Parece ser importante. Deve estar armado. Essa vai gritar muito. Escolheu um estudante magro cheio de livros. Puxou a faca, os livros caíram assustados no chão.
Terminou o livro, fechou os olhos e pensou em morrer. Aquele seria o último livro de sua vida? Era velho. Bem velho. Mas o livro não merecia ser o último livro a ser lido. Não era bom o suficiente. Abriu os olhos e renasceu para a próxima leitura.
Exausta ela sentou no sofá. Os olhos percorrera a casa limpa e cheirosa, ligou a tv para assistir o jornal. O Jornal e a limpeza. Fechou os olhos. Como estava cansada. Muito cansada. Os filhos logo chegariam da escola. O Marido do trabalho. E teria que limpar tudo novamente. Sorriu.
O menininho sentado abraçava o cão peludo que lambia o seu rosto. Na rua um carro desenfreado bateu em um poste. As pessoas corriam de um lado para o outro. Gritos, fumaça. O menino e o cão permaneceram abraços, um cuidando do outro. Parceiros no medo.
No mercado ele sentia que o segurança o perseguia. Com os olhos, próximo, olhar sério e ameaçador. Entendeu. Tinha que comprar e sair logo. Uma sensação de dor e frustração percorria seu corpo. Sentia como se não pertencesse aquele lugar. O segurança sempre próximo, espreitando. Quando pagou as mercadorias no caixa, em uma parede envidraçada pode ver seu rosto preto.
Na festa, onde todos dançavam ele balançava a cadeira de rodas. Bebia uma cerveja e sentia ser de outro planeta. Um amigo empurrou seu veículo para o meio da festa, os amigos o colocaram no meio de uma roda e começaram a dançar e brincar. Ele sorriu, cantou e brincou. Mas ainda se sentia um ET.
Sozinho na frente dos dois garotos ele pensou se valia a pena continuar com aquilo. Não seria melhor pedir desculpas, se humilhar e ir pra casa como um perdedor? Não podia. Não era assim que ele resolvia as coisas. Mesmo sendo mirrado e de pernas finas não aceitaria ser “avacalhado” pelos valentões da aula. Chegou em casa com o olho roxo, o joelho ralado e sorridente.
Na pescaria sentou na cadeira de praia no sol e abriu uma cerveja. Acreditou que estava no paraíso.
Quando saiu do médico chorava. A vida não é fácil. Pensava em como a vida não era fácil. Entrou no carro. Beijou o marido que viera lhe buscar e sorriu. “Não era nada.” E o marido lhe contou sobre os problemas do trabalho.
Esperava ansioso o resultado da seleção para o doutorado. Era um sonho. Não conseguiu. Na lista estava o nome de um amigo. Sorriu. ficou contente. E com inveja. Muita inveja. Achou que não era um homem de bem.
Quando voltou a trabalhar de forma presencial, no final da pandemia, ficou muito triste. Em seus sonhos de retorno acreditava em abraços, em lágrimas, corpos que por fim se aproximariam em um júbilo de esperança e alegria. Ninguém se abraçou. Todos de máscaras, olhos arregalados, desconfiados e tristes. Teve vontade de chorar.
Assistindo ao Jornal Nacional teve vontade de lançar o chimarrão na TV. Como podiam mentir tanto com aquelas caras lavadas e sérias? Trocou de canal e foi assistir um desenho animado. Estava desanimado.
Deitada na cama ela acreditava que era má. E tinha vergonha disso. Sabia que era má. Durante o dia fazia tudo para não ser má. Ajudava todo o mundo, sorria, procurava ser paciente, comedida. Era inclusive humilde o tempo todo. Mas quando deitava na cama e o corpo relaxava tinha vontade de matar, de bater, de gritar. Queria socar a cara do chefe. Xingar a amiga estúpida que só dizia merda. Sacudir a irmã sempre traída pelo marido e cega para as safadezas do filho. E então dormia.
A música era um calmante. Os fones nos ouvidos. Rock and roll. Precisava ouvir no volume máximo. O mundo lá fora não interessava. Não pertencia. No quarto fechado com suas roupas pretas e seus 15 anos acreditava que o mundo tinha que mudar. Uma revolução. Uma guerra. Queria sair e agredir um filho da puta qualquer. Mas era magrinho e fraco. Levantou e entrou na internet. Redes sociais. Encontrou alguém. Nem conhecia bem. Pesquisou a pessoa. Os costumes, a vida. E começou a xingar, provocar, ameaçar. Quando retirou os fones ouviu as batidas na porta do quarto. Era a mãe avisando que era hora da psicóloga.
Quando todos saíram do cemitério ele sentou no chão. Estava aliviado e agora chorava. Muito. não pela dor da perda, mas pela culpa de estar aliviado. A doença é terrível. Ela come o corpo da pessoa e come também o corpo dos que estão próximos. Estava envergonhado. Muito envergonhado. Mas aliviado. Será que Deus estaria zangado?
Na guerra ele via e ouvia a morte explodindo por perto. Ouvi e via. Ouvia e via. Ouvia e via. Em um determinado momento já nem via nem ouvia. E uma musiquinha de infância parecia ninar o corpo cansado e ferido. Começou a gargalhar. Alto. Muito alto. Levantou-se e começou a dançar no meio do tiroteio. Os amigos o viram e pensaram como seria bom dançar um pouco… um tiro atravessou o corpo dançante, logo outro. O corpo retorceu no ar e tombou. Os amigos seguiram morrendo na guerra.
Não, não queria mais não. A mãe olhou para os filhos magros e famintos na beira da mesa. Sorriu. Podiam comer tudo sim. Ela não estava com fome. Nunca tinha fome. Sorriu ao ver o rosto faminto das crianças se empanturrando de arroz. Comeram e saíram correndo pela porta. Levantou-se e foi lavar os poucos pratos e talheres. O estomago roncando e uma lágrima que se misturava com a água da pia.
Ela sempre passava por ali. Linda. Sorridente. Cabelos negros. Dentes reluzentes. E ele sempre esperava. Ela olhava. Sorria. E continuava. Ele ficava. Imaginando. Sofrendo. Ela não sabia nem do amor nem da devoção. Quando ficaram mais velhos se encontraram. Num destes momentos da vida. E ele disse que sempre a amara. Ela arregalou os olhos assustada. Ela também gostava dele. Sempre gostara dele. Ficaram se olhando. Então uma menina puxou a mulher pela mão. E nunca mais se viram.
Chutava o cachorro todo dia. Bosta! Gritava para o cachorro. E o cachorro observava, fugia e se esquivava dos chutes. Comida lá de vez em quando. Um dia o homem o colocou no carro. Viajou quilômetros e largou o cachorro. Na estrada. Sozinho. Ele não achou justo. Pegou o retorno pelo nariz. Cheirando o corpo do dono. Do carro. Das coisas conhecidas. E um dia chegou em casa. O homem surpreso abriu a porta e lá estava o cachorro. O homem ficou tão surpreso que tentou fazer um afago. O cachorro abriu a boca e mordeu. Fundo. Seco. Dentada de vingança. E foi embora pela mesma estrada. Abanando o rabo.


Arte de Eduardo Cambuí Junior




 

Sobre Ronie Von Rosa Martins 25 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

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