Clausura

 

 

A cama e o corpo. Estendidos. Entendidos. Entediados. Os olhos no teto. Longe. No céu. Sol. Lua. Distantes os olhos de fugir dali. Olhos de morrer profundo. Em lamúrias? Não. Não era de se lamuriar. O abraço da cama esmagava seus ossos. As costas doíam, ardiam. Rangiam. Queria gritar? Sim, queria enfiar o pé na porta e gritar. Correr pelado. Gritando. A boca distendeu-se para a esquerda. Um esforço por um sorriso. Pequeno. Mas sorriso. A cama era mortal. Não queria sorrisos nem alegrias. Queria a dor do corpo ali. Estendido. Morto. Esticado. O mundo estava interditado. Pandemia. Morte. Medo. E a cama o abraçava sufocante. Cinco meses. Loucura? Não, ainda não. Achava.
Desenhava, lia, olhava tv, escrevia. Comia. Comia muito. barriga se distanciando rebelde, inchada, “roncante”. A barriga queria se livrar do resto. Do corpo que a prendia. Comer até explodir. Levar a barriga ao máximo da dilatação e desconstruir um corpo insignificante. Que era o dele. Peninha? Babaquice. Levantou da cama. Cobertas ainda caindo. Lento despencar em uma imagem de cinema. Mas não era cinema e o pé enroscou no cobertor e quase caiu. O quase era sempre o sujeito de sua vida. Quase. Era quase qualquer coisa que quisesse ser. Quase.
Pensava em Bartleby, personagem de Melville. Seria possível uma mágica com as palavras e se colocar entre as frinchas da possibilidade, entre as frestas das decisões? Esquivar-se de tudo e de todos? “Preferiria não.” Uma criatura capaz de permanecer entre os momentos do sim e do não, da aprovação e da desaprovação. Entre. No meio.
No espelho a imagem lacônica. Do corpo. Barriga saliente, cabelos desalinhados, barba grande, olhos de bobo. Olhos de louco? Quando jovem percebeu uma coisa terrível em suas fotos de documentos. A partir de uma certa idade os olhos das fotos não brilhavam mais. Pareciam dizer como Bartleby: “Preferiria não…”
Ficou chocado com aquilo. E quando se olhava nos espelhos, buscava o brilho perdido. O olhar brilhante e juvenil deveria ter atravessado o espelho com a Alice. Se perdido. Queria também. Mergulhar no reflexo do espelho e partir. Mas era medroso. Medo de agir e fazer. Era daqueles de pensar e ruminar. Bovino que mastiga o tempo em vários estômagos… calmamente antes de virar churrasco.
Gostava. De carne. Churrasco. Ficou triste. Mais uma vez. Ficava triste várias vezes por dia. Lembrava o que não podia e entristecia. Tudo. A casa, os livros, as músicas, as plantas, o cachorro que parava de abanar o rabo. E fugia. O mundo não gostava de tristeza. Ele parecia gostar. Tinha alguma coisa de coitado. E sorria. Não sabia ser sarcástico nem sínico… era ingênuo por natureza. Sabia. Entendia este estado. Consegui perceber todos os processos e caminhos que o levava a ser um ingênuo e bobo. Poderia inclusive escrever um artigo sobre isso. “O terrível caso do gordo ingênuo: subjetividades adiposas na pós-modernidade”. Sorriu novamente. Hoje a coisa estava estranha. Já conseguira sorrir umas três vezes.
Sentou de cuecas na mesa da cozinha. O relógio na parede zombando. Quase duas horas. Ainda tinha que fazer comida. Geladeira vazia. Merda!
Ainda tinha pipoca. Pipoca e água gelada. Apanhou uma caneta e começou a fazer uma lista de coisa que precisaria: Cerveja, esperança, mortadela, queijo, força de vontade, ânimo, biscoitos, arroz, feijão, coragem, muita coragem, espaguete, refrigerante, tomates, cebolas, alho… Sorriu novamente. Será que os vampiros também seriam infectados pelo Covid-19. Dentes enormes de morder virgens. Os safados. Não gostava de vampiros. Tinha uma simpatia pelo Nosferatu do cinema. Aquele de 1979. Um vampiro careca e corcunda, triste e lamentável. Nada parecido com um Drácula elegante e sedutor. Viva Nosferatu! Gritou bem alto. O cachorro voltou latindo e abanando o rabo. Era ele. O cachorro. Nosferatu. O nome. Do cachorro.
Preto e baixinho. Parrudo com olhos de pedir algo. Levantou da cadeira. Dentro de um armário um saco de ração. O rabo de Nosferatu tremia de felicidade.
Tinham um pátio. Razoável. Pátio de sentar no sol e secar as mágoas. De escolher a sombra da amoreira e sentar na cadeira de palha. Radio do lado. Chiando. Gostava mais do chiado do rádio do que das músicas ou comentários. Sentava e ligava o chiado. Murmúrio distante de línguas ainda não ditas. Malditas. Às vezes achava que conseguia ouvir poemas, vozes estranhas que nas frinchas das vibrações sonoras se definiam… e logo se desfaziam em murmúrios. Murmúrios para fora de qualquer linguagem dizível.
Enquanto comia as pipocas salgadas. Muito salgadas. Pensava na vida. De cuecas pensava na vida. Ridícula vida que tinha e era dele. Não escolhera. Se pudesse escolher não seria aquela. Nunca. Vida de viver com Nosferatu, de cueca, comendo pipoca as duas da tarde e se sentindo coitado. Cuspiu as pipocas. Tinha que fazer algo. Não podia ser só aquilo. O Capitão Ahab tinha uma perna só e era infernal e não desistia nunca! Enfrentar a grande baleia. Segurar na mão a grande espada Vorpal e arrancar a cabeça do Pargarávio! Parou um pouco e pensou em como as histórias de Alice eram terríveis. Símbolos, metáforas, jogos, signos… mas terríveis. Alice era quase um conto de terror. Mas gostava de Alice. Não simpatizava muito com Lewis Carrol. Tinha lido algumas coisas sobre ele… Seriam verdades? E o que interessava agora. O livro era fantástico. Mas que merda de ficar sempre querendo encontrar alguma coisa, algo escondido. Sempre buscando…
Nosferatu deitado o observava de cuecas. Não era o gato que observava Derrida. Nem tinha a profundidade do olhar daquele gato. Eram olhos bondosos, engraçados, irônicos. O cachorro não entendia. Mas gostava dele. Ele olhou para o cachorro e tentou fazer uma digressão filosófica literária no estilo “O animal que logo sou”. Mas não rendeu. Nosferatu levantou-se de rabo balançante e foi para o pátio. Ele era um tédio.
Sabia que era um tédio.
Em pé na cozinha observava a porta aberta do banheiro e a porta aberta do quarto. O banheiro para um banho, para o vigor da vida em clausura, ler um pouco, fazer vibrar um pouco de vida pela casa quem sabe… o quarto com a cama libidinosa de braços abertos.
De cuecas. Atirou-se na cama.
O corpo enrolou-se nas cobertas, esticou-se quase em espasmos e por fim aconchegou-se. Sorriu mais uma vez. “Que merda!”
E voltou a dormir.

Sobre Ronie Von Rosa Martins 25 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

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