Comentários sobre o folclore joseense #6 – Paulinho Azevedo, o Folclore Vivo

Poucos sabem, mas Paulinho Azevedo foi uma forte influência em minha juventude. Quando o conheci, essas foram as minhas primeiras impressões: um músico doido, descabelado, de linguagem desgarrada, um verdadeiro mestre do esculacho. Logo, ele me mostrou sua mão, com um dedo a menos, e me disse que era pianista. Sentou no piano e tocou uma de suas composições. O estilo de Paulinho funde, de forma muito original, cromatismo delirante e lirismo melódico. Rapidamente percebi que Paulinho não era como os outros músicos joseenses. Ele era diferente demais, excêntrico de um jeito que o faz, querendo ou não, exceder a capacidade que a cidade tem de comportá-lo.

Durante a primeira metade dos meus vinte, visitava o Paulinho de madrugada com meus finados amigos Monteiro e Alex Rangel. Paulinho ficava acordado durante toda a madrugada tocando seu piano, e a gente podia bater em sua casa às 4h da manhã sem problemas. Talvez ele tenha sido um dos primeiros músicos experientes a me incentivar a tocar e cantar minhas próprias canções.

Paulinho também foi autor do clássico jingle do Edmundo nos anos 90. A melodia é inesquecível, lembro claramente dela no horário político: “Edmuuuuundo prefeito. 40, PSB. Ele trabalha por São José, e é por isso que ele é Edmundo“. Perguntei sobre o jingle e Paulinho disse que havia feito uma outra música, bem caprichada. Os caras da campanha não gostaram e ele improvisou essa melodia no telefone. Foi o que ficou.

Mas Paulinho está longe de ser uma figura paterna: assim como Edugair, Paulinho também é um avatar do caos. Um dia, combinamos de realizar um concerto na casa do Paulinho com o coletivo Tempo-Câmara. Dino Beghetto e eu chegamos mais cedo e tocamos a campainha. Nada do Paulinho atender. Ficamos alguns minutos em frente à sua casa na Vila Ema, até que avistamos o Paulinho agachado perto do Taco Loko. Cheguei mais perto e vi que ele arrancava freneticamente várias plantas de um canteiro próximo. Aí disse para ele: “porra, Paulinho! Você tá parecendo um doido aí pegando essas plantas!”. Ao que ele, irritado, respondeu: “vai se f#@$%, vocês que nunca chuparam um c*, não sabem de nada! Não sabem nada da vida, se nunca chuparam um c*!“.

Dino e eu desatamos a rir e a irritação passou. Paulinho usou as plantas para decorar o espaço do concerto. No mesmo dia, Dino flagrou o Paulinho em um canto de sua casa, falando sozinho. Ele dizia algo como “mas que merda, esse meu p@* que não sobe mais“. Falava para ninguém. Ainda bem que o Dino capturou essa pérola.

Esse tipo de construção é bastante comum no Paulinho. Às vezes, quando eu o encontrava nas ruas da Vila Ema, ouvia ele dizer: “hoje eu acordei de manhã e aí pensei: mas que bosta! Tô vivo ainda“. Essa frase é quase um bordão do Paulinho. Também me lembro de uma ocasião em que Paulinho me disse: “Bruno, chame um amigo seu para ir na minha casa. Chame qualquer amigo. Aí você diz para ele assim: aqui em casa, não tem nada para beber. Se quiser beber algo, bebe água da Sabesp na torneira. E se quiser comer algo, come o meu c*“. Nunca soube se ele falava sério ou se era brincadeira. Mas já bebi água da Sabesp na casa do Paulinho.

Também me lembro de ficar impressionado com o repertório literário de Paulinho. Às vezes Paulinho lia poemas em voz alta para seus visitantes. Parecia gostar de literatura mais do que gostava de música. Tocava uma composição ao piano e depois perguntava: “mas vocês gostam mesmo dessa bosta?“.

Paulinho tem muitas composições que não foram publicadas. Penso que Sunzé é realmente ingrata com seus artistas: a essa altura, já deveria haver um esforço dos aparatos públicos para registrar e preservar sua obra. Mas é esperar demais de uma cidade onde os esforços de cultura são concentrados, em gestões tecnocratas como a recém eleita, na brodagem e no diletantismo.

A última vez que vi o Paulinho foi em uma homenagem ao Alex Rangel em Paraibuna, onde toquei também. Eu estava terrivelmente embriagado nesse evento, e me lembro apenas do Paulinho no palco improvisando acordes carregados de tensão e cantando “Alex Rangel, Alex Rangel… ô, Alex Rangel“. Lembro até hoje da melodia. Ele gostava muito do Xandy, deu para sentir a dor do Paulinho.

Há também um passado lendário: Paulinho conheceu todos os medalhões da MPB, almoçou comida preparada pela Marieta Severo na casa do Chico Buarque, conversou com Tom Jobim e circulou na esfera “biscoito fino” da música brasileira durante os anos oitenta. Paulinho também tocou em cruzeiros e testemunhou drogas serem embarcadas de um bote no meio do mar. Paulinho foi tratado em sua infância pelo doutor Nelson D’Ávilla. Há realmente um abismo, uma diferença de grandezas entre Paulinho Azevedo e o músico médio joseense.

Mas é de esperar. Eles nunca chuparam um c*. Eles nunca saberão o que é a vida até chuparem um c*.

A música de Paulinho expressa valores que me são caros: harmonias ambíguas, melodias brilhantes, fusão do “popular” e do “erudito”, uma boa dose de delírio e a intempestividade que apenas verdadeiros artistas possuem. Dê uma escutada e se conscientize do que a cidade desperdiça:

Sobre Bruno Ishisaki 7 Artigos
Cancionista e compositor de música de concerto. Doutor, Mestre e Bacharel em Música pela UNICAMP. Especialista em Composição Musical pela FMCG. Professor substituto do curso de Composição da USP. Autor de conteúdo de artes na Editora FTD. Membro das bandas Senhor Shitake e Os Joseense e do coletivo Tempo-Câmara.

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