Conto: Superfície

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Por Milton T. Mendonça

Superfície – Capítulo 1

A nave se moveu vagarosamente saindo do deck ao qual estava ancorada a espera dos passageiros que levaria à Ganimedes, único satélite de Júpiter colonizado pelos humanos. O piloto conduziu seu imenso corpo de oito andares por entre o tráfego intenso do espaçoporto situado a meio caminho da lua. O sol iluminou seu casco espelhado e a luz refletiu fulgurante transformando-a em uma pequena estrela. Sua trajetória elíptica foi traçada entre os dois mundos e zarpou como um flash em direção ao espaço profundo.

Muai sentado à janela olhava maravilhado para todos os lados. Era a primeira vez que saia da superfície da terra e estava muito feliz. Ele tinha oito anos de idade e seu nono aniversário coincidiria com sua chegada a Ganimedes  dali a dois dias. Sua bisavó fora quem lhe dera o presente insistindo com seus pais para que permitisse acompanhá-la nessa aventura. Estava muito feliz. Sentia-se como os primeiros expedicionários que como ele, ao fazerem a mesma viagem setenta anos atrás, desconheciam totalmente como seriam recebidos pela nova biogeocenose.

Encostou o nariz no polímero da janela e observou o horizonte. Viu a lua se aproximar e desaparecer num piscar de olhos. Imaginou-se dentro de um líquido transparente e conseguiu ver borbulhas acompanhando a nave e ao fundo pequenos animais fugindo de predadores. Sorriu olhando para trás encabulado para ver se alguém o observava.

– O que aconteceu, meu querido?

Sua bisavó perguntou passando a mão em seu cabelo liso avermelhado sem se voltar. O livro de papel a hipnotizava trouxera vários em sua bagagem de mão. A sua maior ambição era colecionar livros antigos. Sua biblioteca era conhecida mundialmente talvez até em Ganimedes – pensou parando por um segundo e observando sua face compenetrada antes de se virar para a janela sem responder.

Ficou observando por mais algum tempo o espaço depois encostou-se e fechou os olhos. O silêncio era irritante. Levantou-se e pulou a perna de sua acompanhante saindo para o corredor. Percorreu-o e subiu a escada até o convés. Lá em cima estava repleto de passageiros alguns sentados em mesas tomando bebidas coloridas enquanto outros nadavam nas piscinas de tamanhos e profundidades variadas ou atiravam com canhões laser em pratos voadores lançados por catapultas do lado externo da espaçonave.  A enorme cúpula transparente filtrava os raios solares criando a impressão que estavam em um transatlântico a caminho de alguma ilha paradisíaca. Com a vantagem de ser sempre dia ensolarado permitindo o uso contínuo da área de lazer o que era aproveitado por um grande numero de pessoas de ambos os sexos.

Permaneceu por bastante tempo perambulando pelo convés puxando conversa com os tripulantes. Descera ao compartimento da classe turística depois foi à segunda classe e não encontrou nada que lhe chamasse atenção. Não vira nenhuma criança e a maioria dos adultos estava submerso no MPN. Voltou e se sentou ao lado de sua bisavó que cochilava com o livro sobre o peito. Estava chateado. A novidade do primeiro momento havia passado e o excesso de energia não o deixava quieto. Começou a chutar o banco da frente que estava vazio. O som monótono penetrou o ouvido de Elisa fazendo-a abrir os olhos levantar a cabeça e se voltar para ele.

– Está chateado – perguntou sorrindo.

– Não tem nada para fazer – reclamou baixinho.

– Lembra-se que falei que qualquer hora lhe contaria a história da descoberta da cidade subterrânea pelos homens da superfície? Você ainda está interessado?

– Claro biselisa!

Elisa riu da expressão.

– Você me lembra seu pai.  Foi assim que ele me chamou quando você nasceu.

– A senhora vai me contar agora?

– Vamos almoçar. Posso começar enquanto almoçamos o que você acha?

– Tá bom, biselisa, vamos então.

Saiu correndo em direção à escada alegre. Olhou para trás com o pé no primeiro degrau e viu sua bisavó sorrindo com a bolsa na mão caminhando em sua direção. Subiu rapidamente saindo no convés.

Elisa alcançou o último degrau e olhou em volta apertando os olhos para fugir da claridade que assolava o tombadilho. Procurou o bisneto e o viu sentado na mesa ao lado da amurada. Foi até onde ele estava e sentou-se sorrindo.

– Você é muito ligeiro, menino.

– Sou mesmo – ele respondeu alegre.

– Já pedi o meu. Quero cheese salada e coca cola…

– Está bem… Apertou o botão no centro da mesa e esperou.

– Senhora? O garçom fez uma leve reverencia estendendo o cardápio.  Pegou-o e abriu escolhendo um prato a base de massa, rosbife e um bom vinho da safra de dois mil e doze.

Enquanto esperava perguntou à Muai:

– Seu pai não contou o que aconteceu?

– Não! Papai disse que ia contar, mas nunca tem tempo.

– Tem um monte de livro sobre o assunto…

– Eu sei, mas a senhora esteve presente… Os livros não contam tudo. Papai disse que tem muita ficção nos livros. Tudo que eu pergunto pra ele não é verdadeiro. Ah! Parei de pesquisar…

– Ainda me lembro do choque. Sinto um arrepio quando me lembro do grande líder dizendo que eu era a responsável pela sobrevivência do povo da cidade subterrânea…

– A senhora ficou com medo?

– Muito medo… Eu estava acostumada com pesquisa e dava aula sobre materiais não ferrosos na universidade não era uma heroína de capa e espada – sorriu contente – Fiquei apavorada…

– Conta desde o começo pra mim, bisa. Vou gravar e depois vou postar na rede… Somente com verdades. Assim quando alguém pesquisar vão encontrar tudo certinho…

– Muito bem… Deixa-me ver. Lembro que estávamos sentados na sala de reunião… È um imenso salão com uma mesa redonda… Você já esteve lá?

– Já! Papai me levou lá na última vez que estivemos em Primicia.

– Que bom! Lembro-me que não queríamos levantar da mesa. O choque fora tão grande que não tínhamos ânimo para mais nada.

– Você chorou?

– Não! Fiquei com vontade, mas tive vergonha. Seu bisavô estava lá e não queria passar uma imagem de fraqueza para ele.

– Eu choro… A senhora me acha fraco?

– Não! Chorar não quer dizer que a pessoa é fraca… Fiquei com vergonha, apenas isso.

– Vocês já eram casados?

-Não… Nem imaginava que nos casaríamos. Apenas simpatizava com ele. Éramos os únicos estranhos ali. Todos os outros eram velhos conhecidos… Faziam parte da cidade.

Suas lembranças a levaram para aquele dia quando o futuro era uma enorme incógnita e nenhum dos cinco sentados à mesa queria tomar a iniciativa de sair para o mundo caótico que parecia se formar fora daquela sala.

O garçom trouxe o pedido. Enquanto comia rememorou tudo outra vez e sentiu como se tivesse acabado de acontecer. Já fazia algum tempo que não se lembrava mais de quanto fora emocionante sua vida. Sentiu-se alegre e grata por ter sido escolhida, diferente do que sentira naquela época. “Como o tempo faz mudar a perspectiva dos acontecimentos” – observou sua volta – As pessoas se divertiam saltando para a piscina sem se dar conta que estavam em pleno espaço sideral.  Olhou para cima e contemplou a cúpula. “Incrível o avanço tecnológico. Em apenas algumas décadas conseguimos sair para o espaço de uma maneira espetacular. E tudo isso graças a ciência dos homens da caverna” – sorriu com a expressão cunhada pelos jornais. “Os paradigmas do homem da superfície foram demolidos um a um. Não ficou pedra sobre pedra” – Constatou perplexa.

Muai não parou de falar um minuto tirando-a de suas lembranças com sua tagarelice.  Perguntou, perguntou e perguntou sem dar descanso. Elisa aproveitou um momento inesperado de silêncio para lhe fazer uma pergunta:

– Vamos fazer um pacto? – Perguntou de supetão

Muai levantou a cabeça e seus olhos brilharam de curiosidade.

– Pacto… Que pacto?!

– Após terminarmos com a sobremesa vamos descer e começarei a contar toda a história verdadeira sobre a descoberta da cidade subterrânea pelos homens da superfície e você não pode me interromper tá bom?

– Há biselisa! E se eu não entender alguma coisa?

– Tá bom, somente pode perguntar se a duvida for sincera. Promete?!

– Prometo. Mas tem que começar do começo… Não pode ficar pulando igual o papai.

– Concordo. Vamos descer?

Muai engoliu a sobremesa e correu para baixo ansioso. Elisa chamou o garçom que veio solícito. Imprimiu a digital no aparelho estendido e se levantou.  Antes de descer olhou em torno para sentir a alegria que reinava no ambiente. Estava feliz por ter sido uma das responsáveis por aquela vida. “O mundo é mais feliz atualmente. Houve uma evolução moral… Não foi somente tecnológica. Esse é o verdadeiro motivo da felicidade do homem atual” – Murmurou enfática.

Terminou de descer os degraus e caminhou para sua poltrona. Muai esperava sentado. Quando a viu fez o sinal de um zíper fechando sua boca e caiu na gargalhada. Elisa teve que rir. Gostava muito daquele menino e lhe contar a história de sua vida a deixava contente.  Queria que sentisse orgulho da velha bisavó e sabia que faria bom uso das informações.

Continua nos próximos capítulos…

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