Crônica: Afinal, podemos ser deuses!

Por Milton T. Mendonça

Virara rotina acordar no meio da madrugada e ficar me torturando. Insistia em colocar minha vida numa perspectiva sombria, desenrolando todos os erros que cometera, revivendo tudo com um prazer mórbido, meio masoquista.   Isto me deixava cansado o dia todo. Minhas tarefas diárias ficavam inacabadas, e muitas vezes, quando terminava, ficava insatisfeito com a qualidade do serviço, tendo que recomeçar no dia seguinte, levando o dobro do tempo para realizar um trabalho que normalmente terminaria rapidamente.

Algumas noites atrás resolvi que faria diferente. Como um relógio, despertei exatamente no mesmo horário e minha memória automaticamente já me levava para o inicio do filme pastelão, quando de um pulo levantei-me e comecei a saltar em frente ao espelho de corpo inteiro que tenho próximo a cama. Olhei-me nos olhos e sorri, tanto pelo ridículo da situação como por sentir que não estava mais naquele estado de espírito peculiar que me levava ao tormento ao qual tentava escapar. Depois de poucos segundos, voltei a deitar-me e uma pequena confusão formou-se em meu pensamento, como se a agulha do braço da radiola tivesse pulado algumas trilhas no velho disco de vinil que é minha cabeça atualmente.

Fiquei deitado tentando não pensar em nada, apenas observando o quarto com seus móveis feitos de sombra a espera do amanhecer. Estava lúcido e relaxado. Senti uma emoção quente invadir meu peito e uma sensação boa derramou-se pelo corpo todo trazendo segurança e a convicção de que tudo estava certo, tudo estava bem. Adormeci.

Acordei com o sol queimando minha pele. Peguei o celular e verifiquei as horas. Estava atrasado. Levantei-me com o corpo descansado e um bom humor que há muito tempo não sentia.

Conforme o dia foi passando e meu bom ânimo se mantinha ileso, achei que devia tentar entender o que acontecera, porque não é toda hora que consigo sair das armadilhas que as emoções costumam me pregar, e minha intuição dizia que topara com algo poderoso e não devia deixar se perder na indiferença.

Enquanto pincelava a tela que estava pintando, da minha nova convidada, que deixara de lado desde que o tormento começara, meu cérebro, quase de maneira autônoma, analisava todo o evento à procura do insight que me levara à solução do problema. Lembrava-me apenas que me levantara como que empurrado por uma mão invisível e, sem pensar, começara a pular. A solução acontecera num átimo, inconsciente e, não podendo repeti-lo, me deixava perplexo e empanava aquele momento de grande poder que sentia.

Lembro-me que a palavra livre arbítrio ficou flutuando no meu pensamento como um pequeno ponto de luz, enquanto ficava tateando no escuro, tentando unir a lembrança do acontecimento com a emoção que sentira ao executar aquele malabarismo ridículo. Estava forçando a lógica. O raciocínio, como um soldado, marchava rígido, mecânico, abrindo caminho por entre as informações, cego, com um único objetivo: solucionar o problema.

Minha cabeça estava começando a doer quando senti a mesma sensação que sentira naquela noite. Do fundo do pensamento, por detrás   daquela força metálica que forçava passagem, uma suave brisa atravessou o raciocínio e, como uma onda, alcançou minha consciência, iluminando-a. Percebi num estalo que não era a lógica que me traria a resposta. E sim, minha alma.

A palavra livre arbítrio cresceu me deixando incapaz de pensar em outra coisa. Descansei os pincéis no cavalete e saí para minha caminhada diária, precisava andar, toda aquela informação me deixava agitado.

Antes, porém, corri ao dicionário e procurei a definição que melhor me ajudasse compreende-la, não queria partir de premissas confusas. Encontrei a definição – arbítrio: dependente só da vontade – (filosofia) Arbítrio: a faculdade de determinação. Livre: da vontade humana.

Caminhei pelo centro da cidade, absorto com o problema, subi a rua quinze de novembro e continuei andando.

Determinação, pensei. Vontade livre. Realmente estava determinado a acabar com aquele sofrimento e minha vontade de encontrar uma solução tinha me feito tremer por dentro, na tarde do dia anterior ao acontecimento. Senti uma força rara em mim naquele momento. Deixei a mente trabalhar essa descoberta e lembranças de outros momentos transformadores surgiram espontâneas. Percebi que todas as vezes que tomei uma decisão que mudou o rumo da minha vida, sempre fora antecedida por um momento de grande tensão. Não fora uma decisão baseada no orgulho, ou simplesmente uma decisão que podia ser delegada, por não representar risco ou importância. Foram momentos em que minha alma também estava presente, momentos que conseguira unir o coração e a mente. A alma e o raciocínio. A lógica e a emoção.

Fiquei eufórico ao descobrir o fenômeno. Senti-me um alquimista com poder para transformar o mundo. Era como se de repente descobrira uma força que não sabia que possuía e que a partir da descoberta nada me seria impossível.

Voltei para casa quase correndo. Precisava ficar sozinho para pensar. Nunca me sentira tão satisfeito quanto naquele momento. Aprendera a usar uma ferramenta, que ao usá-la inconscientemente como sempre fizera, estava perdendo quase a totalidade de seus benefícios. Era como se usasse a bengala de um cego. Agora, sentia que podia enxergar depois de nascer com os olhos vendados. Nunca me esquecerei da sensação.

Já faz algumas semanas que isso acontecera e ainda continuo perplexo. O efeito dessa descoberta ainda não foi totalmente compreendido, mas muita atitude humana que antes considerava apenas literatura, hoje sei que é fruto desse poder maravilhoso. De Gandhi, com sua não violência a Picasso com sua arte audaciosa, além de todas outras atitudes que fizeram do mundo o que ele é hoje, fora apenas o exercício desse dom maravilhoso. Nem sempre foi usado corretamente, é verdade, o mal, infelizmente, também faz parte do ser humano, mas esse dom existe, e é uma parte importante da natureza humana. E sua compreensão é fundamental para podermos usa-lo não só em benefício próprio, mas para beneficiar o próximo, que em última análise é nossa principal responsabilidade.

Obs: Esse texto foi publicado no Valeparaibano mais ou menos em fevereiro de 2009 ou final de 2008, não me lembro muito bem. Mas sei que foi algum tempo antes de descobrir a outra metade desse instrumento maravilhoso que é o livre arbítrio. A partir dessa descoberta surgiu um movimento que me levou a conhecer a fé inteligente. A metade que faltava para me trazer paz de espírito. A partir daí tudo ficou diferente em minha vida.  Espero conseguir passar esse novo conhecimento aos meus leitores a partir dos próximos textos…

Sobre Quênia Lalita 434 Artigos
Quênia Lalita escreve poesia. É ilustradora, tradutora e faz revisão de textos. E mora em São José dos Campos, SP

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