O Demônio

 

O Demônio

Por Milton T. Mendonça

(aos meus filhos)

A música se repetia no aparelho há mais de doze horas, o som enchia o ambiente com sua melodia suave e terna acalmando sua ansiedade. O colchão cheio de protuberâncias e pontas de metal saindo pelos rasgos, conseqüência de anos de uso ininterrupto, machucava seu corpo e o fazia resmungar. O frasco de plástico ligado ao braço por um tubo translúcido pingava seu conteúdo, monótono, enquanto a atendente, com sua paciência habitual tentava fazê-lo beber o remédio da tarde.

“Há quanto tempo estava ali?” – se perguntou tentando lembrar o tempo decorrido desde o acidente. Não podia se lembrar.

– Esses remédios!
Exclamou alto chamando a atenção da enfermeira.
– Calma.
A enfermeira falou sem muita convicção, levantando sua cabeça e o encorajando a tomar as pílulas.
– Não quero dormir.
balbuciou
– Preciso vê-los. Você prometeu que me deixaria vê-los.
– Ainda é cedo, não se preocupe. Virão mais tarde e poderão ficar juntos o tempo que quiserem, agora relaxe e descanse, será melhor.

Teobaldo fechou os olhos relaxando o corpo dolorido. Sua memória insistente o forçava a se lembrar como tudo começara. O ódio veio à tona como sempre acontecia quando voltava ao passado e percebia nitidamente como fora manipulado. Nunca tivera nenhuma chance, fora ingênuo ao pensar que a vida real pudesse ser como nos livros, única fonte de conhecimento que tinha do mundo, na época. Pessoas são muito complexas, precisa-se ser corrupto para descrever a corrupção, impossível imaginá-la em toda sua astucia e, o verdadeiro corrupto não cria condições para se tornar escritor. Agora ele sabia disto, mas era um conhecimento inútil, a vida já estava perdida
.
Voltou a atenção para seu interior, tentando encontrar na alma algum apoio que segurasse o desmoronamento por mais algum tempo. Estava dividido, dois desejos disputavam o direito de exercer sua vontade: de um lado tentava segurar a destruição que vinha chegando devagar mas inevitável, do outro, o fim era cobiçado. Queria que tudo terminasse o mais rápido possível e que aquela última conversa não se realizasse.

Lembrou-se do parque sentindo a textura da grama e o cheiro de flores exóticas como naquele dia. A manhã cálida não trazia indícios que o demônio estava chegando e o tornaria cativo, covardemente tecendo suas mentiras, o levando a se tornar um objeto em suas mãos cruéis e desumanas. Chegara camuflado, revestido por um corpo de mulher e, o pegara como se pega um pássaro, o prendendo e torturando dia-a-dia até transformá-lo em um rato. Era como se sentia quando finalmente conseguira escapar, anos depois – um rato.

Hoje, deitado naquela cama não sabia quem era. Continuava prisioneiro da lembrança, e o desejo de vingança atrapalhava qualquer tentativa de encontrar a paz. Tornou-se um doente, uma pessoa desconfiada, egoísta, estério, vagamente parecido com um homem.
Estava morrendo e a aproximação da morte o deixava lúcido. Percebia a inutilidade de sua vida, levada à sombra do ódio e isto era intolerável. Seu coração tremia pelo desgosto de saber que nada mais poderia fazer.

O urro de desespero surgiu inesperado de sua garganta assustando os companheiros de quarto, que se encolheram a espera do pior. Lágrimas rolaram pelos sulcos de sua face endurecida – as primeiras de sua vida adulta – trazendo uma enxurrada que sacudiu seu corpo como folha na tempestade.

Aos poucos, porém, a calma voltou e uma sensação indescritível se derramou sobre ele como água fresca, levando toda sua dor para longe. Fechou os olhos e se sentiu embalar suavemente. Adormeceu.

Acordou sobressaltado na semi-escuridão da madrugada recente. Todos em volta dormiam. “Vieram?” – se perguntou preocupado. Não tinha certeza, os anos tinham destruído todos os vínculos. Tornaram-se desconhecidos. Ele precisava se explicar, contar como tudo realmente acontecera. Não queria que o ódio fizesse com eles o que fizera com sua vida. Seria seu legado: a verdade. Venceria o demônio no último instante – pensou – sorrindo com a idéia.

A dor surgiu inesperada, lancinante. Tentou apertar a campainha que traria socorro, mas não conseguiu. Pensou nos três meninos, seus filhos, sentindo desmaiar. Não teria mais tempo.

Antes de perder os sentidos ouviu a gargalhada explodir no quarto escuro.

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