O DIÁRIO DA TRINCHEIRA
– “Tenham cuidado ! Todos os dias vou rezar para Nossa Senhora do Desterro protegê-los dessa loucura que estão fazendo ! “-
Essa foi a recomendação que Dona Maria Rosa, minha tia-avó, fez a meu pai e a meu tio naquela manhã de julho de 1932. Minutos depois, os dois embarcariam num trem da Mogiana rumo a São Paulo, para alistarem-se nas tropas constitucionalistas.
Estourara a Revolução. Os paulistas, cansados de aguardar Getúlio Vargas cumprir sua promessa de redemocratização do país, pegaram em armas. Reivindicavam a aprovação de uma nova Constituição e eleições diretas. E, como Getúlio insistia em “fingir-se de morto”, foram à luta.
Meu pai , então com 22 anos, e meu tio com 19, receberam treinamento na Força Pública do Estado de São Paulo (hoje Polícia Militar). Dias depois, fardados, armados, mochila, cantil, foram enviados para combater as tropas federais na região do Rio Paranapanema, divisa com o Estado do Paraná. Aquela área, próxima a Itararé, Buri e Capão Bonito, foi palco das mais sangrentas batalhas da resistência paulista. Os dois lados perderam centenas de homens, entre mortos e feridos.
A luta era desigual. Cerca de 15 mil soldados do Governo Federal, tropas profissionais, bem treinadas e equipadas, contra 5 mil combatentes paulistas, em sua maioria voluntários, como meu pai e meu tio.
Os paulistas resistiram durante bom tempo nas barrancas do Paranapanema. Sob o fogo intenso dos canhões e o bombardeio dos “vermelhinhos” (assim eram chamados os aviões da Ditadura), sem suprimentos e apoio logístico, tiveram de recuar para as proximidades de Buri. Meu tio, recebeu a ordem de cobrir o recuo da tropa usando a única metralhadora disponível. E ele o fez até disparar o último cartucho. Em seguida, juntou-se ao restante dos companheiros.
Nas proximidades de Buri cavaram trincheiras para impedir o avanço dos inimigos. Ali permaneceram por muitos dias, cercados por tropas vindas do Rio Grande do Sul, num dos episódios mais dramáticos da Revolução Constitucionalista. Sem poder sair das trincheiras, debaixo de chuva e frio, munição escassa, falta de alimentos e medicamentos para socorrer os feridos, que não eram poucos, alguns até em estado de dolorosa agonia, resistiram até o limite.
Quando se alistou, meu pai levou consigo um pequeno manual de instruções militares, do tempo em que servira no Tiro de Guerra de Casa Branca. Aquela espécie de caderneta continha algumas folhas em branco, destinadas a anotações. Nelas, meu pai escreveu seu “diário da trincheira”, registrando, a lápis, os acontecimentos de cada dia. Relatou como, embora a situação piorasse cada vez mais, havia muito companheirismo e solidariedade entre aqueles que ele chamava de “os meus irmãos de trincheira”. Todos jovens, com a vida pela frente, mas naquele momento com o futuro incerto, sem saber se sobreviveriam até o dia seguinte. Falavam com carinho de seus pais e namoradas. Riam com as “piadas de português”. Mas, em alguns momentos era possível ouvir soluços, apesar de na hora dos combates nunca lhes faltar coragem.
Nem a utilização do trem blindado conseguiu evitar a derrota. O estado foi invadido pelas tropas federais em todas as frentes. Com o armistício assinado no início de outubro, a coluna em que meu pai foi combatente depôs as armas. Todos receberam um salvo-conduto e regressaram às suas cidades de origem. Terminava ali a epopeia paulista.
Varias vezes reli aquele diário. Meu pai guardava como uma relíquia aquelas folhas amareladas pelo tempo. Ele se orgulhava de ter lutado pela redemocratização do país e um pouco desse orgulho se encontrava naquelas páginas.
Seu Zizinho, como era chamado, faleceu há trinta anos. Nunca mais encontrei o diário. Ninguém sabe que fim levou aquela lembrança de meu querido e saudoso pai. Isso me dói e só eu sei como.
Por Gilberto Silos
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