Órfão de Kazan

Órfão de Kazan

Por Raul Tartarotti

No livro “Funes, o Memorioso” , Jorge Luís Borges conta a saga de um jovem de 19 anos que caiu do cavalo e sofreu um terrível mal. Desde então ele não consegue esquecer nada. Além dos novos pensamentos, os antigos e mais profundos, transbordam a todo momento. Borges convida a refletir nossas vidas a partir da construção afetiva da memória. Ele sugere que precisamos esquecer para sobreviver, porque existem verdades que a vida repele, e que deveríamos deixar pra trás lembranças sem conteúdo afetivo, caso contrário corremos o risco de apenas catalogar ou enumerar o conhecimento, como um estudo de fósseis. O espaço da memória que nos prende, ocupa o rancor, o ressentimento e a tristeza, e que por vezes nos levam a solidão, e ao vazio cultivado pela ausência de buscas por novos caminhos. O tempo me faz senhor de mim e muitíssimas vezes dos que dependem de minha sapiência. Se é que já a tive pra oferecer, ou apenas repassei o que aprendi nessa breve existência. E pra seguir diferente de um autômato que se faz expressar sempre a comandos programados, não há necessidade de rebuscar mecanismos relacionados a uma fase mais primitiva do desenvolvimento psicossexual, como por exemplo, ao módulo operandi de um período do desenvolvimento em que ainda não lográvamos integrar os objetos e a realidade, a fase esquizoparanóide. Tampouco devemos evitar, agir na vida adulta como um “órfão de Kazan”, expressão Russa que designa alguém que se faz de infeliz para ganhar a simpatia das pessoas.
Escolha um novo ritmo se sua vida está quase parada, pode utilizar um metrônomo pra ajustar seu compasso, não será difícil escolher um tempo maior, já que parado te sobra mais desse precioso componente que passa rápido.
Procurei me encontrar olhando no espelho, que é o outro, pra saber como sou, e se fui algum dia. Mas eu estava oco por fora. E descobri que todos estávamos, ninguém nos entregou nada quando chegamos. Não devemos pensar que a vida seja somente seguir, e que por decurso de prazo toda seria resoluta.
Aquele espelho me disse que o vazio não foi plantado por maldade, ou falta dela. Nos foi entregue pra ser preenchido, um oco imenso do tamanho de uma oportunidade. Pra você preencher com tudo que lhe passar, e o que puder criar. A começar pra dentro de si. A velha teoria ainda me serve, de que se não tenho input em minha cabeça, não terei output, ou seja, o que conversar. Se apenas repito minhas histórias todos dias, sem ler ou conversar com pessoas que tenham uma conversa enriquecedora, como poderei eu me enriquecer? Como poderei me tornar alguém interessante se nem a mim me interesso. Como faço pra sair da minha mesmice?
Comece a ver logo uma saída desse beco, antes que a redenção te busque. Não sairemos dessa inteiros, alguns pedaços ficarão na memória. Esse ainda é o lugar que pesa mais, sempre passa pra dizer que está ali, não sabe se conservar em silêncio, parece que lhe dói também ter acontecido e precisa dividir com alguém, nesse caso, você.

Sobre Raul Tartarotti 97 Artigos
Natural de Gramado, Raul teve formação básica em Eng. Biomédica. É cronista em diversas publicações no Brasil e exterior, impressa e eletrônica. Estudou literatura Russa, filosofia clássica e contemporânea. Suas crônicas são de cunho filosófico e social, com objetivo de trazer reflexão ao leitor sobre temas importantes de nosso cotidiano.

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