Percepções de fim de mundo: Uma visão rasa e barata de um brasileiro no sul do sul do Brasil

Primeiro momento: A angústia

Sentir medo. Sentir o espaço resumido, reduzido. Ouvir e ver absurdos que acabam tomando lugar de verdades. Perceber que algumas pessoas realmente não percebem nada. Ler bobagens diariamente e em abundância; escritas por quem deveria ter, no mínimo, a parcimônia de filtrar suas fontes. Perceber que a violência gratuita se encontra na minha porta, e que sempre esteve ali, só que agora é filmada e aplaudida por muitos. Ver que o fascismo, travestido de vovozinha, mesmo com dentes afiados e olhos assassinos enganou ou convenceu todo o mundo. Que o racismo naturalizou-se e inclusive é defendido por uma parte da sociedade que não tem vergonha de declarar isto: “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”.
Sentir medo. De ter uma filha e perceber que o mundo machista, grosseiro, absurdo, ridículo vê no sexo feminino um perigo que deve ser predado, caçado, humilhado, violado. Sentir medo deste momento em que vivemos. Neste período nefasto em que homens brancos, ricos e tradicionalmente frágeis culturalmente, também compactuam com esse pensamento medieval, redutor, abusivo e limitado.
Sentir medo de sair de casa. De abrir a porta e jogar o corpo para o fora do espaço doméstico. Sentir medo da morte invisível que um vírus mortal esfrega em nossas caras todos os dias. Sentir medo de um governo que minimiza tudo, que escamoteia números, que nega a ciência, que nega a cultura, que nega a educação. E pior, um governo que tem como inimigo, que elege como maior inimigo todas as áreas do conhecimento. Que parece ter como objetivo eliminar a produção de um pensamento capaz de se descolar dos ranços ideológicos e religiosos propostos e definidos por ele. “Bolsonaro sanciona lei que isenta templos de ICMS até 2032”, “Bolsonaro: vamos importar armas para uso individual sem imposto” , “Proposta tributária do governo prevê taxação de 12% para o mercado editorial; setores que incentivam a leitura são isentos por lei desde 2004”.
Sentir medo de ouvir e perceber que alguns amigos que conviviam com você, que bebiam cerveja e jogavam futebol no mesmo time nos finais de semana, apoiam, defendem um governo que é explicitamente contra o povo, os pobres, as minorias. E inclusive se afirma em um negacionismo que põe em risco a saúde física e mental de qualquer ser humano.
Medo de perceber que em algumas pessoas, sobressai o prazer quase nefasto de oprimir, de ostentar, de cuspir uma superioridade que seria contestada por qualquer argumento embasado em raciocínio lógico e bom senso.
Tudo isso constrói uma aura terrível, como se fosse uma espécie de negatividade, de frustração, de dor intensa que nos aflige que nos apequena. Sinto vergonha de afirmar minha nacionalidade. Ser brasileiro hoje é uma vergonha. Somos vistos como criaturas ridículas, bestiais, medonhas e totalmente incultas. Monstrinhos violentos que cultuam Deus e a morte. Armas nada têm a ver com segurança. Essa imagem é falsa, mesquinha, fraca. A arma é a morte. Rezamos para Deus, mas queremos eliminar o vizinho negro, queremos bater nas mulheres, queremos dar tiros naqueles que não pensam abraçados ao nosso pensar. O nosso Deus é o da raiva, da impaciência. Adoramos citar o nome de Deus e Jesus como escudos sagrados para escondermo-nos dos nossos terrores pessoais.
E tecemos nossos rancores misóginos, xenofóbicos, homofóbicos, que são afirmados por discursos midiáticos e defendidos e representados por figuras públicas. Os famosos “homens de bem”.
Angústia terrível de pensar e habitar uma visão de mundo que sugere a harmonia, que proclama a humanidade, que reclama a igualdade de direitos. Angústia de ser perseguido, difamado e ameaçado. Forças sinistras se aliam para isso.
Angústia de ver a Educação tratada como um produto, como uma mercadoria. E mais medo ainda em perceber que as personagens desse “romance”, ou dessa “tragédia” que é a Educação, muito pouco importam para aqueles que detêm o capital e lucram em fluxo contínuo com a comercialização do ensino, da aprendizagem e do saber. Em plena pandemia, quando mais de mil pessoas morrem por dia, governantes resolvem mandar para as escolas alunos, funcionários e professores. “Eduardo Leite propõe volta das aulas pela educação infantil em 31 de agosto, mas em duas cores de bandeira”. Colorir a morte e o medo.

Segundo momento: A raiva

Logo, do sentimento de angústia, repleto e prenhe de todos os medos possíveis que um governo autoritário, ridículo e incompetente consegue e pretende nos causar. Lá do fundo, silencioso, rebelde e inconformado, surge em nós. Não tem como não surgir, não há possibilidade, não há condição humana que consiga diante de tamanha pressão em alguns casos, mas também tamanho descaso em outros não se apropriar daquele sentimento que te faz cerrar os punhos e trincar os dentes. Raiva.
Estarei falando de mim, visto que sentimento tão passional pode ser negado por muitos. A raiva às vezes é travestida de outras coisas. A raiva é ligada a sentimentos menos nobres, menos cultos, menos eruditos. Explicitar um sentimento que nos remete que nos aproxima e alia a uma reação animal não é algo que muita gente se orgulha.
Mas como disse lá no título, escrevo impregnado dessa sensação de fim de mundo. Não este mundo em que a vida, de várias formas erradia sua vitalidade. Até o vírus. O covid-19 está vivo. A vida não acaba. Algumas espécies de vida acabam. Mas não estou sendo pessimista. Não acredito no fim da humanidade. O ser humano é um vírus ainda mais poderoso que qualquer outro. Resistirá. O fim do qual eu faço alusão é o fim de um tipo de subjetividade. Um fim de uma forma de viver.
E não creio que coisas mais humanas virão dessa experiência de fim de mundo. E é aí. Neste ponto. Onde o silêncio pausa o mundo, e de onde eu vejo que não haverá mudança nenhuma… Que sinto raiva. Imensa e insana raiva.
O que fazer? Receber injúrias com sorrisos? Socos com flores? Ameaças com supostas reações legais que sabemos tardias, viciadas, repletas de valores que não são os nossos?
Raiva imensa e intensa. Sinto muito. Sofro também com isso, sou homem de letras. Alio-me a filosofias, busco sempre o diálogo. A letra, a palavra, a frase, o discurso, a linguagem, a língua, a literatura é o meu chão. Ou o que pretendo como terreno. Que esburaco, quebro, entorto, dobro…. O texto é o meu espaço de vida e pensamento. Mas mesmo ele. Em tempos anormais como o que vivemos. Tempos caóticos, no sentido de bagunça, desordem, descaso em que o Brasil vive, até ele não consegue se esquivar da minha raiva.
Uma raiva contida, aprisionada, asfixiante. Uma raiva que envenena meu intelecto, que ameaça minha razão. Mas uma raiva estranhamente potente e que me transformando, me avizinhando do animal que todos somos, me faz mais humano, mais gente, mais lágrima, mais soluço…
E mesmo enfurecido. Lembro quem sou. E mesmo quase arrebentado de frustração e raiva. Lembro-me de onde vim e do que fui feito. É como se minha raiva impulsionasse outras forças em mim. Raiva. Força caótica. E por dentro. Ela traz a recordação de corpos que resistem. De forças que os ditos “homes de bem” não imaginam. E mesmo não sendo ninguém. Mesmo sendo mais um. Mesmo sendo estatística. Sei que sou mais do que tudo isso. Meu olho trás o poder e a raiva que sinto por tanta injustiça, por tanta incompetência e por tanta dor. Meu corpo é a própria dor. Mas não se dobra nem treme. Mais forte mais resistente. Meu corpo e carne e é palavra. Meu corpo é texto que se recobre de raiva, meu corpo é frustração que se investe em verbo e voz. Sou resistência. Minha resistência. Ínfima e poderosa resistência.

Sobre Ronie Von Rosa Martins 27 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

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