Quimera – Capítulo II

Quimera – Capitulo II

Por Milton T. Mendonça

Levantei-me coloquei a taça sobre o banco e a chamei para dançar. Levantou-se constrangida e a tomei nos braços. Sua pele macia recebeu meu toque com uma descarga elétrica inesperada quase me derrubando. Rodopiei pela sala na esperança de me livrar da agonia de sentir meus nervos vibrarem como uma companhia ecoada ininterruptamente.

– O milagre quebra uma lei da física?

Perguntei na tentativa de tirar minha atenção do calor de seu corpo.

– Sim! Toda e qualquer ação do espírito é uma ação sobre a matéria. Sobre o mundo físico. Mesmo não sendo catalogada dessa maneira pelos cientistas por falta de interesse em observar esses fenômenos o milagre é o ato de romper uma lei imutável… Uma lei natural… Uma lei da física.

Respondeu depois de alguns segundos o que me deixou extremamente ansioso.

Seu rosto em meu peito encheu minhas narinas com o perfume morno e sedutor de seus cabelos criando em mim uma sensação de eternidade… De conclusão. Dançamos várias musicas seguida sem nenhuma vontade de nos separar. O vinho começava seu efeito peculiar e nos levava para o mundo das sensações.

O relógio tocou no horário habitual e despertei assustado com o barulho como sempre faço. A confusão inicial do primeiro momento deu lugar as lembranças da noite anterior. Levantei a cabeça e olhei em volta precipitado deixando-a cair no travesseiro logo após perceber que não havia ninguém ao meu lado.

– Teria sido um sonho?

Murmurei com os olhos fechados.

Minha cabeça estava oca e minha boca seca em consequência do vinho vagabundo que ingerira.

Levantei-me e saí do quarto em direção ao banheiro. Elisa estava na cozinha, nua, preparando o desjejum.  Sem saber como agir por falta de memória real entrei apressadamente e abri o chuveiro.  A água fria me despertou e minhas lembranças surgiram espontâneas.

Após dançarmos várias musicas consecutivas nos sentamos no sofá encabulados pela tempestade de emoções que se derramara sobre nós. Tentara beijá-la, mas ela não consentira nos afastando um pouco mais. Ficamos em silêncio por um longo tempo até que numa tentativa desesperada de quebrar o gelo perguntara:

– Esse conjunto de informações está disponível para qualquer pessoa? Particularmente nunca encontrei nada parecido com isso ao longo da vida…

Continuara com a cabeça baixa como se nada ouvira. Sem aviso, porém, levantara a cabeça e me olhara surpresa. Suas mãos tremeram levemente quando levara aos lábios a taça que tinha nas mãos e bebera um gole enquanto pensava na resposta que devia me dar.

– No mundo físico está contida toda e qualquer informação que o espírito deseje encontrar. Basta apenas procurar. O tempo que levamos para encontra-la depende apenas da força que colocamos na procura.

– Onde deveria começar minha procura?

– Antes de começar a procura é necessário saber o que se quer encontrar…

– Mas…

– Em segundo lugar deve-se estar consciente de que enquanto humanos temos limitações de diversos gêneros: Culturais, intelectuais, morais entre outras. E que encontraremos mais facilmente a resposta se as perguntas forem feitas conhecendo essas limitações.

– Não entendo…

– Por exemplo: Sou brasileira e passei minha vida toda no Brasil. Culturalmente estou imersa na realidade brasileira. Então, a primeira pergunta deveria ser: Qual linguagem é usada para expressar a espiritualidade no Brasil?

– O cristianismo!

Exclamara rapidamente começando a entender onde queria chegar

– Exatamente! Agora precisaremos ir um pouco mais fundo. O ser humano apesar de ser geneticamente muito parecido um com o outro, podendo até se dizer com um pouco de exagero, que somos todos iguais  psicologicamente somos muito diferente. Quando se está em busca de respostas espirituais precisa-se levar em consideração toda essa diferença. O que poucos compreendem é que a realidade é relativa exatamente por causa dessas diferenças.

– Como?

– Aqui está outro problema de definição. Sabe quando uma coisa é relativa?

– Bom!

– É quando o jeito da coisa depende do observador. Ou seja, depende de quem olha a coisa. Temos que considerar o local que a pessoa que olha está parada. O ângulo de visão que sua localização permite. A distância que ela está da coisa. A luminosidade. Se a pessoa que observa tem problema de visão. Etcetera…

– Então o mundo é relativo porque eu o enxergo usando como comparação minhas experiências de vida? Minhas inseguranças, meus traumas, minha cultura? È isso?

– Entendeu muito bem…

– Então existem milhares de realidades?

– Uma realidade para cada habitante do planeta… Elas fazem intersecção umas com as outras, mas cada pessoa vive em sua própria realidade que infelizmente é bloqueada para o outro.

– Então como vou encontrar as resposta?

– Devemos ser práticos. Não devemos inventar nada. O melhor jeito é usar a experiência de outros que procuraram e encontraram respostas. Encontraram Deus. Sem Deus não existe milagre e para chegar Nele  precisa-se ter fé. Cada cultura ao longo de milênios catalogaram suas buscas e deixaram como legado para seus descendentes. No cristianismo não foi diferente.

– Está falando da bíblia?

– É o livro sagrado do Cristianismo…

– Mas não é apenas um livro de história? Um livro cheio de mensagens bonitas, mas impraticáveis… Apenas literatura?

Elisa me olhara com os olhos profundamente tristes e baixara a cabeça retornando ao silêncio. Ficara  ali sentado sem saber o que fazer. Por um lado estava surpreso com o rumo que a conversa tomara e maravilhado com essa nova maneira de enxergar o mundo. Por outro lado não conseguia compreender como a bíblia sagrada entrara naquela conversa cheia de metafísica.

Essa foi minha última lembrança coerente. Alguns flashes surgiram enquanto me enxugava., mas nada além da minha taça sendo enchida de vinho ou a taça cheia de Elisa no meio caminho entre eu e ela.

O resto fora apenas devaneio. Meu desejo viera à tona enquanto dormia e fora realizado pelos deuses do sonho.

Saí do banheiro e fui á cozinha. Elisa de costas, nua, lavava algumas louças. A mesa do café repleta de guloseimas atraiu minha atenção de imediato. Estava faminto. O café com sua fragrância deliciosa, o pão, a manteiga, o queijo, as frutas me deixaram surpreso. Sentei-me á mesa e desvirei a xícara colocando-a sobre o pires e enchendo-a com café ao leite. Cortei um pedaço de pão e passei lentamente a manteiga em seu interior. Comi em silêncio provando de tudo ao alcance de minhas mãos enquanto observava vez ou outra as costas de Elisa. Seu dorso extremamente sensual me deixou envergonhado com os pensamentos que fluíam sem controle. Senti vontade de manda-la se vestir, mas tive medo que fosse mal interpretado e melindrasse seus sentimentos corrompendo sua naturalidade. Acabei o desjejum e me levantei da mesa agradecendo sua habilidade como cozinheira

–  Como consegue cozinhar tão bem? Estava tudo uma delícia… Onde conseguiu esses quitutes?

Perguntei tentando ser engraçado.

Olhou-me com um sorriso maroto no rosto feliz e não disse nada.

– Gostaria de pinta-la vestida… Pode escolher algo que lhe caia bem e ir ao ateliê?

Articulei na porta antes de desaparecer de seu campo de visão sem esperar resposta.

Caminhei até a sala e parei frente ao cavalete. Tentei imaginar o retrato que deveria pintar, mas minha imaginação estava embotada. Somente conseguia pensar naquela nova descoberta que Elisa propusera.

Peguei uma tela em branco setenta por quarenta centímetros coloquei no cavalete e comecei a rabisca-la com carvão rapidamente. Quando terminei de preenchê-la afastei-me alguns passos e olhei surpreso: Anjos e demônios brigavam por uma alma rasgando-a e esmagando-a de uma maneira fantástica. A expressão dos guerreiros era espetacular. Enquanto os demônios gargalhavam cruelmente os anjos expressavam a dor que a alma de semblante indefinido deveria sentir e não demonstrava. Cada anjo parecia sentir uma dor diferente de seu par enquanto os demônios todos tinham a mesma expressão de perversidade e prazer. O ambiente era lúgubre com luz e sombra se confrontando num redemoinho intangível

Fiquei espantado com a representação inconsciente de minhas duvidas. Pensei apaga-la, mas em vez disso peguei o verniz e borrifei em toda a tela fixando a imagem. Fiquei admirando-a enquanto esperava Elisa desocupar e se prestar em posar para mim.

Quanto mais eu olhava mais espantado ficava ao me deparar com os detalhes. Um rio estreito cruzava a tela longitudinalmente e em suas águas escuras e tormentosas cadáveres eram arrastados para algum lugar além da moldura. Ao fundo próximo a vulcões em erupção monstros horripilantes mastigavam cabeças segurando com as patas imundas os corpos ensanguentados.

No primeiro plano onde os guerreiros digladiavam pelos despojos do vivente, pedaços de corpos se arrastavam tentando atrapalhar a luta e definir a vitória para os demônios insaciáveis.

Estava hipnotizado com tamanha torpeza.

Não sei quanto tempo ficara ali sentado. Sei apenas que em algum momento algo tocou meu ombro delicadamente e um ruído de espanto alcançou meu ouvido me fazendo despertar.

– O que é isso?

Elisa perguntou espantada.

– São minhas duvidas.

Respondi calmamente.

Ela olhou por um longo tempo se voltou e dirigiu ao divã sentando com as pernas cruzadas e a espinha ereta numa posição de yoga. Seu silêncio era pesado e não ousei quebra-lo. Fiquei olhando-a esperando que sua imagem fizesse materializar em minha imaginação o novo trabalho que deveria executar.

– Detesto religião!

Exclamei em sua direção cansado de aguardar que tomasse as rédeas da conversa.

– Por quê?

Perguntou em resposta.

– Porque os religiosos são queimadores de livros.

– Como?

– São controladores. Eles fazem o mesmo que um governo absolutista quando toma o poder. Queima os livros para deixar o povo na ignorância e assim controla-los mais facilmente.

– A religião não queima livros. Não atualmente.

– Mas proíbe os membros de ter contato com o mundo o que é a mesma coisa. Para vencer o inimigo precisa-se conhecê-lo. O mundo existe. Se esconder dele além de ser covardia nos deixa vulneráveis.

– Porque se preocupa com religião?

– A bíblia! Você não falou sobre a bíblia?

– Sim, mas a bíblia não tem nada a ver com religião. Não na busca sincera…

– Você está me deixando confuso… Temos milhares de religiões que usam a bíblia como referencia… Somente aqui no Brasil.

– Entendo. Na realidade essas diversas denominações não são consideradas religião apesar de isso ser apenas uma questão semântica… Entendo sua duvida.  Quando falo na bíblia estou dizendo para estuda-la integralmente. Essas religiões, como você diz, usam apenas uma trilha e não o livro como um todo.

– Estou cada vez mais confuso…

– O nosso livro sagrado é muito complexo e ao mesmo tempo hermético. Não se esqueça do que conversamos sobre o motivo do mundo ser relativo. E também não se esqueça de que a intenção de nossa busca é encontrar o caminho que nos levará a Deus.

– Como cada pessoa tem uma maneira única de compreender o mundo certamente deve existir uma maneira particular de essa pessoa reconhecer o caminho que a levará a Deus.

– É, faz sentido…

– Existem diversas denominações porque cada uma se baseia em apenas alguns versos da bíblia que repetem ad nauseum criando uma trilha ao longo do livro sagrado e junto com ela estabelece a maneira de viver dos seus adeptos.

– Não me parece que é uma coisa boa.

– Não julgue muito rapidamente. Encontrar Deus é uma tarefa árdua. Se você se der ao trabalho de conhecer o conteúdo dessas trilhas vai perceber que o que muda entre elas é a dificuldade do caminhante em percorrê-la e a certeza da veracidade do conhecimento que ele encontra ao longo da viagem. Quando a trilha que percorre o permite ouvir Deus deve obedecer seu ensinamento. Sem questionar!

– Como!

– As respostas que encontra aumentam sua fé ou não. E isso o aproxima de Deus ou o mantém inerte desejando, mas não conseguindo dar o empuxo necessário para levá-lo até Ele. Mas essa busca, mesmo equivocada o mantém no caminho e com certeza vai chegar a hora em que seu espírito se revoltará e o levará para a trilha correta o empurrando para frente. E a caminhada será reiniciada.

– Então ler a bíblia toda é a melhor solução?

– E praticar seus ensinamentos. Agir com o espírito sobre a matéria. Essa é a definição de praticar nesse caso. Fazendo isso você não fica prisioneiro de nenhum sistema e pode encontrar o caminho mais facilmente. Mas existe uma regra que deve ser seguida: A procura não deve ser solitária.  Deve compartilhar sua busca com, no mínimo, outra pessoa. Mesmo que isso o obrigue a caminhar por uma trilha… O importante é que sua busca seja pessoal e sincera. Assim você encontrará Deus!

O silêncio após essa última frase foi uma benção. Minha cabeça doía e estava cansado desse assunto. Mandei que se levantasse e tirasse a roupa. Decidi que a retrataria nua com todas as emoções que isso revelaria. Com o pincel desenhei rapidamente seus traços e mandei-a mudar de posição e se ajoelhar olhando com uma expressão de terror para onde estava anteriormente. As mãos levantadas pedindo clemência a mantinha subjugada por uma força invisível e herética somente vista por mim.

Terminando o esboço mandei-a retornar a posição anterior e comecei a pintá-la. Coloquei na paleta, nervosamente, porções generosas de tinta nas cores primárias e fui misturando conforme o quadro ia criando vida. Estava irritado e ao mesmo tempo excitado com sua presença inalcançável e esse turbilhão de emoção  foi a força motriz usada para imprimir na tela o que meus olhos enxergavam. Mandei-a se ajoelhar depois voltar a posição em pé dezenas de vezes por pura raiva somente para vê-la me obedecer e com isso derramar sobre ela minha frustração.

Por fim quando o quadro estava quase pronto e ela exausta pela tortura infringida por mim mandei-a se vestir que a levaria para almoçar. Enquanto estava ausente terminei o retrato rapidamente e assinei. Sentei no banco e fechei os olhos também cansados. Aos poucos minhas emoções retornaram ao normal e senti pena de Elisa. Que sensação era essa que ela me fazia sentir? Porque se mostrava com tamanha naturalidade, mas colocava uma cortina de ferro entre nós? E o seu jeito de enxergar os mistérios? Quem era essa mulher?

Cobri a tela e esperei que voltasse á sala para vermos juntos o resultado de nosso trabalho.

Aparecera com o vestido esvoaçante na cor pastel que revelava o contorno de seu corpo esbelto. O sapato de salto tinha em sua ponta uma curva que o diferenciava de tudo que já tinha visto. E a cor vermelha jorrava de seu interior como uma fonte luminosa.

– Onde estão seus sapatos verdes?

Perguntei me lembrando de que não o via desde a noite anterior.

– Não preciso mais deles.

Respondeu com o sorriso misterioso no canto dos lábios carmim.

Observo seu rosto e procuro a cicatriz em seu queixo, mas não encontro. Os cabelos desgrenhados deram  lugar a um penteado muito bem feito. E a cor de um negro retinto em nada se parecia com a coloração de quando chegara. Somente o nariz arrebitado os olhos verdes iluminados denunciavam que era a mesma pessoa.

Fiquei observando-a por um longo tempo confuso. O colar, os anéis, o relógio tudo era novo e brilhante.

– Terminou o quadro?

Perguntou-me tirando do transe.

– Sim vamos vê-lo?

Retirei o pano que cobria a tela e nos posicionamos a uma distancia razoável. A pintura me pegou desprevenido. Não a tinha visto no todo e me surpreendeu pela emoção que transbordava da imagem. O anjo em pé com um semblante perscrutador olhava friamente para a mulher ajoelhada pedindo clemência. Suas mãos agarradas a coxa do anjo que nu segurava uma espada flamejante em uma das mãos enquanto com a outra agarrava os cabelos da suplicante ameaçando cortar sua cabeça. As duas tinham as fisionomias exatamente iguais como se fosse a mesma pessoa, mas a dor que transparecia no rosto da mulher ajoelhada contrastava fortemente com a face insensível do anjo vingador.

Ao fundo um rio de fogo cortava uma paisagem avermelhada com pontos negros aqui e ali saturando o observador com uma sensação de opressão. A beleza pictórica era sobrepujada pela violência das emoções contida nos personagens. Mesmo a frieza do anjo era violenta e opressora.

Esperei o comentário de Elisa, mas ele não veio. Olhei seu rosto e percebi uma compreensão em seus olhos que me irritou. Joguei o pano sobre a tela e me dirigi á porta abrindo-a e me voltando em sua direção. Ela estava atrás de mim. Esperei que transpusesse o umbral e tranquei a porta. Descemos a escada em silêncio.

A cidade estava fervilhando de gente. Deixei o Chevrolet no estacionamento do jardim do sapo e a convidei para passear no calçadão antes do almoço. Queria lhe dar um presente.

Continua…

Sobre Quênia Lalita 330 Artigos
Quênia Lalita escreve poesia. É ilustradora, tradutora e faz revisão de textos. E mora em São José dos Campos, SP

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