Sobre “A cena cultural e política em São José dos Campos”, de Joka Faria

O professor, poeta e colunista desta Revista, Joka Faria, que conheci no início dos 1990, na Comissão de Literatura da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, postou um texto sobre a cena cultural e política em São José dos Campos, que para alguns mais velhos, como eu, suscita um gosto de re-existir, uma vida revivida, a cultura gerando movimento.

O texto provoca no mínimo  a lembrança do que se poderia denominar de ‘uma tradição’ na cidade de São José dos Renitentes … Como nos tempos em que, ainda no ‘término’ da ditadura militar, nos reuníamos noites e dias a fio para lutarmos para mudar a cena estagnada e manipulada da cultura joseense. É muita história para contar, gerou um livro, o Ciranda dos tempos-espaços do desejo, que sempre situei como um dos livros possíveis de se contar esta história. Haveria muitos, outros e outros, intra, sub, supra, até mais bem humorados, menos intencionais, mais libertos de opressões… muitos. Claro, o tempo respinga nuances incontroláveis sobre os fatos: personagens fantásticos, utopias, estratégicas, conflitos, à época, até se chegar a um consenso necessário que abraçasse e coroasse a criação da então Fundação Cultural de São José dos Campos, em 1986. É vero: uma ardente paciência, à la Neruda, para um frenético exercício dialético, pela união de contrários, descobertas, somas, acordos, até se construir o consenso ( a grande chave das práticas democráticas), tudo pela construção da esfera pública da cultura, fatos determinantes para aquela mudança tão radical., uma revolução. Tudo sob uma vitalidade ininterrupta e irrefreável pela cultura.

Para que surta como um alerta, ou uma reflexão, neste momento em que mais uma vez efervescem movimentações por parte dos coletivos de arte e cultura da cidade, tomo a liberdade de deixar algumas crenças, oriundas de práticas, estudos, observações sobre o passado que, como afirma Mário de Andrade, é para se  refletir, e não para se copiar.

Tenho por premissa, diante do exposto, que não serão governantes nem políticos que alavancarão mudanças na direção da saúde e sobrevivência da cultura e da arte. Serão, sim, os coletivos culturais que darão o tônus e farão com que eles exerçam, juntos, o que a comunidade cultural consensualizar como melhor para uma comunidade, enfim, para uma cidade inteira.

Tenho acompanhado, há anos, os equívocos de setores da cultura, as escolhas, as políticas de cultura unilaterais, produzidas por organismos estatais e privados. Muita coisa boa, bem feita e instigante, mas que na maior parte, no entanto, promove apenas a fruição, a recepção passiva, a contemplação. Vultosos recursos são injetados netas programações que acabam por entreter, apenas, pouco enraizando, nada interferindo na história desvalida do contemporâneo, nada ou quase nada gerando que seja ao menos inesquecível.

À revelia e simultaneamente, o que move se restringe à inserção de expressões marginalizadas, dos grupos reivindicatórios; se evidenciam a cultura e a arte firmadoras  das questões de gênero, raça, credo, enfim…

Diante deste quadro e percorrendo a história da cultura em São José, me surpreendo ao concluir que a Fundação Cultural Cassiano Ricardo cumpriu mais do que sonhávamos: muitos coletivos e espaços culturais nasceram e se consolidaram a partir dela. Não imaginávamos que um movimento no cerne de uma fundação de cultura de uma cidade manipulada pelo Estado desde sempre, institucionalmente, desde os anos 30, percorrendo os anos de chumbo dos 70, monopolizada por intervenções estratégicas de governos autoritários, reconheceria e geraria não só seus criadores, mas profissionais da arte, trabalhadores e gestores de cultura. A emancipação que desejávamos pela arte-ação, de novo lembrando Mário, espalhou-se pela cidade, com suas ações e espaços independentes, suas trocas, diferenças e aproximações.

A arte vai além, mesmo, muito além das instituições. Uma das máximas, em período como gestores era: a instituição não pode ser maior que o movimento. Sabemos que  Estado é sempre interventor, no mínimo, ele, estranhamente, se torna produtor de cultura, numa inversão catastrófica. Toda institucionalização da arte e da cultura promove enquadramento, limites e, surpreendentemente, censura. Esses organismos têm uma função, sim, já que existem. Eles têm o dever de instigar , provocar, oportunizar experiências e mecanismos para criação, apreciação e circulação da arte para o maior número possível de pessoas. O poder público deve se manter atento para não se confundir com o mercado de arte; antes, ele é agente multiplicador e distribuidor de benefícios a todos os cidadãos; no limite, leis de incentivo, fundos de cultura, tratados com impessoalidade e lisura, são meios requeridos de promoção da subsistência e renovação de ações e projetos deflagradores de dinâmicas artístico -culturas ainda saudáveis, embora em nossos dias o desvio e a aniquilação do conceito de cultura e arte, de política cultural, por parte do governo central , esteja contaminando, minando e demolindo tudo, sob nossos olhos e sobre nossa inexplicável impotência.

Mesmo por isso tudo, e porque este assunto não tem fim, devemos revisitar, ler e reler Teixeira Coelho para que nos preenchemos de mais e mais vitalidade.

… nunca será demais recordar que a melhor definição de cultura é que a cultura é uma longa conversa, de tal modo que quando inexiste conversa, inexiste cultura, pura e simplesmente: existem palavras de ordem, dogmas mas não cultura. (Coelho, Teixeira, A Cultura e seu contrário)

Desejemos ter debates como o apresentado, notícias como esta, a cada dia, para respirarmos um pouco melhor, e acreditarmos que uma revolução é sempre possível, sempre e após uma longa conversa.

Beth Brait Alvim

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