Leões na fechadura, de Fabiano da Mata: um romance genial

Por Rita Apoena

No romance “Leões na fechadura”, de Fabiano da Mata (Editora Penalux, 2023), temos André, um senhor idoso que vive sozinho em um apartamento na companhia de um gato. Em certo momento, ele se vê muito incomodado com os novos vizinhos barulhentos que se mudam para o andar superior e lhe roubam o sossego. Escreve o autor: “O que são os homens sem o sossego? Quais loucuras não nascem da carência dessa pérola das mais raras?”

Assim, sem contato com os seus familiares, André encontra, nos passeios matinais a um café, um alumbramento da sua existência, principalmente, quando encontra alguns velhos amigos (com quem mantém certa implicância) ou é atendido por Ana, uma moça muito bonita e amável, que resgata nele alguns sentimentos da mocidade. Além dela, ele também cultiva laços de amizade com Cidinha, uma mulher que trabalha em um restaurante e lhe fornece o almoço diário. Assim, a sua solidão se mostra latente quando ele encontra, nessas duas mulheres, a figura materna que lhe provê o alimento, a atenção e o cuidado que ele tanto precisa, embora não o admita nem a si mesmo.

Quando Ana vai até o seu apartamento, ela repara que não há nenhuma foto dos seus familiares, algo que nem ele mesmo havia percebido. Desse modo, André está sozinho ao lidar com as vulnerabilidades provocadas pela velhice e se ampara intensamente em figuras femininas afáveis, mas estranhas. Essa vulnerabilidade é construída com muita densidade psicológica, pois o autor é capaz de edificar um personagem muito verossímil, um personagem que vive, que está vivo além das suas páginas, e que nos faz perguntar quando vamos encontrá-lo na rua, ao virarmos a esquina. Ainda hoje, muitos dias após ter finalizado o romance, ainda me pergunto por onde andaria ou como estaria o personagem.

O crítico literário Harold Bloom, em seu livro “Como e por que ler”1, escreve que nós lemos não apenas porque jamais conheceremos na vida real tantas pessoas como através da leitura, mas também porque “amizades são frágeis, propensas a diminuir em número, a desaparecer, a sucumbir em decorrência da distância, do tempo, das divergências, dos desafetos da vida familiar e amorosa”. E, assim, ao fechar o romance, em estado estupefato, constatei que não havia fechaduras para o protagonista: ele adentrava os meus pensamentos assim como os vizinhos adentravam os seus. E isso porque a construção psicológica dos personagens acontece paulatinamente, de modo muito perspicaz, em detalhes que vão sendo espalhados ao longo de toda a narrativa, em diálogos e descrições de cenas.

Assim como os novos vizinhos adentram a sua vida, os seus pensamentos e os seus ouvidos, André adentra a nossa, em virtude do manejo inteligente das cenas. Em uma delas, quando vemos o personagem mais fragilizado em decorrência dos seus próprios impulsos, nós conseguimos estar literalmente em sua pele – envelhecida, ou sentir o seu intenso abandono. E, tal como ele, queremos oferecer proteção aos indivíduos mais vulneráveis: eis a empatia que ele nos desperta. Nós o transformamos num velho amigo, meio ranzinza, cheio de manias, teimosias e implicâncias, mas um velho amigo, alguém capaz de subverter a realidade. Pensa o protagonista: “Mas quem ouve os velhos? Dizem que em seus ouvidos só cabe cerume, que já são surdos de tantos murros mil desferidos pela vida. Mas não, os meus continuam afiados e afinados. Além do mais, ainda não estou nas últimas. Hei de suportar muita coisa.”

Numa primeira leitura – pois há muitas leituras possíveis nesse romance labiríntico -, vemos o personagem muito incomodado com os novos vizinhos que se mudam para o andar superior e se portam de forma muito violenta uns com os outros. A paz e o sossego que André tanto prezava são subtraídos do seu cotidiano, e ele passa a experienciar uma dinâmica familiar muito diferente da sua. E, assim, de forma romanesca, também passa a elucubrar sobre a vida dos novos moradores, preenchendo, com características várias, as lacunas entre os sons que ele escuta daquela família. Maria, a mãe, subjugada por Armando, o pai, e Átila, o filho adolescente do casal. Escreve o autor: “Mas Maria, terrivelmente resignada, encarregava-se de quase tudo com seus braços de polvo. (…) A alma do apartamento já pertence a Maria. Os homens apenas habitarão. Maria, pelo contrário, transpirará com a casa, tocará as chagas do lugar. É sempre assim.”

Nesse momento, temos a coexistência magistral de dois focos narrativos, que se mesclam de forma líquida, como se os personagens atravessassem realmente o teto do apartamento e se introjetassem em sua mente. Dessa forma, os barulhos dos novos moradores roubam-lhe a paz de espírito e direcionam o seu pensamento. A utilização de onomatopeias demonstra, na própria linguagem, a grande importância que os sons e os ruídos adquirem na vida do protagonista.

Este, que vivia sozinho, ocupando-se de pequenas implicâncias com os amigos que lhe tiravam o sossego, vê-se sequestrado para dentro de outras vidas que lhe atormentam. Quando ele vivencia um crime sendo cometido, passa a se envolver de modo devastador no episódio, comprometendo a sua privacidade e a sua liberdade. E não podemos esquecer que o personagem deseja algo: continuar com o seu sossego e obter a atenção das figuras femininas presentes na história. Mas, mesmo quando ele busca essas figuras, elas também o colocam em conflito com o seu desejo.

Há muito a se falar sobre o crime presente na trama e sobre o envolvimento de André no episódio, mas precisei de muito cuidado ao elaborar essa resenha para não estragar a surpresa do leitor, pois Fabiano da Mata encontrou um desfecho genial para entrelaçar toda a narrativa. Eu gostaria que o leitor, assim como eu, entrasse desavisado nessa história, e fosse também arrebatado por ela. Eis um romance que merece ser lido e relido muitas vezes. Um romance que aborda a vulnerabilidade do ser humano quando alcança a velhice, e os desdobramentos mentais que podem ocorrer quando os laços afetivos são fragilizados. Enfim, um romance genial.

Rita Apoena, escritora

Referência: 1.BLOOM, Harold. Como e por que ler, trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 15

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