A providência mais adiada foi também a mais doída. E quem haveria de duvidar que não seria assim?
Começando pela penteadeira. Um bob de cabelo e um frasco de laquê vencido, numa das gavetas. Uma caixa vazia e meio carunchada de sabonetes belgas na outra. Mamãe não gostava de jogar nada fora. Juntava coisas com o mesmo amor com que juntava gente em casa.
Do largo ventre da cômoda, vasculhado na limpeza, davam o ar da graça um folheto de missa, um dedal enegrecido e até uma pequena concha sabe-se lá de que praia.
A mesinha de centro que até outro dia escorava os netos todos, entre o engatinhar e o caminhar vacilante, foi sendo posta para fora nos ombros de dois rapazes de macacão. Mal sabiam o peso dos risos e prantos que aquele móvel tão leve já havia suportado.
O oratório e, junto a um santo, uma latinha de pastilhas Valda cheia de dentes de leite e de cordões umbilicais. O mais velho entre os irmãos nascera ali, ainda em mãos de parteira e com a casa recém-entregue, a exalar sinteco e tinta.
Levaram a mesa de jantar, e com ela a feijoada fumegando, o perfume acebolado do bife e as migalhas de pão que meu pai juntava para o papagaio.
A cama, da vida toda e do minuto último de ambos. O de papai, treze anos antes do de mamãe.
A cada retirada, um branco na parede silhuetando o móvel ali encravado desde o início dos tempos. Paredes que, mais alguns poucos anos, conhecerão a ira das marretas, transformando cenários de alegrias, nascimentos, dilemas e mortes em estacionamento de clínica ou de supermercado.
Por último, o armário do quarto deles, cheirando a naftalina. Depósito de enxovais, primeiro os deles e mais tarde os nossos. Lençóis de parto, vestidos de primeira comunhão e até o tailleur e o terno das Bodas de Prata ali encabidados – de 1975 até ontem.
Sem mais aquela, um toc-toc vindo de dentro do guarda-roupa. Abri a porta.
“SURPRESA!!!”, gritaram juntos papai e mamãe, como jogral de jardim da infância, as pernas encolhidas para caberem lá dentro, no esconde-esconde insuspeito. Papai e mamãe, ali espremidos, disfarçando aquele riso de quem sabe que fez arte… danadinhos esses dois.
Esta é uma obra de ficção
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