No coração de Shirley — Um filme de Edyala Yglesias

No coração de Shirley — Um filme de Edyala Yglesias

Por: Diego El Khouri

 

Coração. Órgão muscular oco (preenchido de identidade, forma e conteúdo). Coração. Coração vivo. Escarlate. Sistema Circulatório. Veemente força. Bombardeio.1,2,1,2,1,2… 12 centímetros de comprimento. Abarca toda existência. 1000 quilômetros. 9 cm de largura. Infinitas paisagens. Distância longínqua. 250 gramas de coração. Artérias e veias. Sangue. O espaço. A fronteira. Limites adjacentes. Paredes da memória. O que sente e bate. O que bate e absorve. Transparece e renova. 1, 2, 1, 2, 1, 2…
No coração da cidade. No ventre exposto e cruel da cidade. No olhar febril e alucinante da cidade. As luzes translúcidas e vertiginosas da cidade. Cidade-metrópole. Cidade-vertigem. Cidade-“delirium”. No coração da noite. Da noite na cidade. Na intensa noite da cidade. No coração de alguém. No coração que fala em alguém. Talvez dela (talvez nosso). De todos nós. Shirley no centro da cidade. No meio do caos. Crisálidas luzes de neon. Imergida em caos e espanto. . “No centro do centro do centro do mundo”. Do seu mundo. Do nosso mundo.
A cidade, o gênero, o corpo. Shirley parada no meio do nada. Estatelada. Espantada. Suando frio. Olhos arregalados, esbugalhados. Um coração que grita. Solitário como é a própria vida. Uma faca amolada de dois gumes. “Faca na carne”. A mulher em posição de risco. Sempre em risco. Máculas de um patriarcado que fere e coibi. Minorias lançadas à esmo. Rasgadas da história (?). E que história! Edyala Yglesias toca fundo, fundo na alma humana nesse documento-denúncia intitulado “No coração de Shirley”, um documentário (de 2002) tocante e totalmente atual — A violência diária perante as minorias (que na realidade não tem nada de minoria).
A cineasta, formada em cinema na França, trabalha atualmente em seu doutorado na Université de la Sorbonne-Nouvelle Paris o tema Representações do feminino nas cinematografias do Brasil, dos Estados Unidos e da França. Seu trabalho sempre caminha por entre as fronteiras. Os movimentos feministas, lgbts, entre outras correntes são fios condutores de sua busca cultural (que tem como caráter o social). O universo das zonas de conflitos nada mais é que faces sem máscaras dessa sociedade. Sociedade por vezes cruel e segmentária; caótica. Cada vez mais tecnocrática e individualista. Uma sociedade que gera preconceito desde a base. Violências são estimuladas e nem mesmo o avanço tecnológico ameniza esse impacto. Muitas vezes é ele mesmo gerador desse tipo de violência. O processo de sabotagem do ensino parte desses princípios: extermínio da população, miséria instalada, estado de instabilidade e medo. As mãos manchadas de sangue da omissão estão cravadas em todos nós. Não há como ficar indiferente a esse documentário. Em muitos casos não precisamos nem sair de nossos lares para ver (ou sentir) esse tipo de violência. É necessário transmitir e explanar tais verdades. Romper tabus. Tabus ainda hoje intransponíveis. As rupturas são necessárias e discutir tais temas se torna extremamente urgente. A cineasta Edyala Iglesias, nesse foco ideológico, “transita na zona de inúmeras relações de parentesco entre as questões urbanas na posse dos espaços em conformidade com a perspectiva de gênero ao problematizar a fixidez com que os estereótipos criados para e sobre a mulher parecem querer reduzi-la ao lugar de mercadoria.”
O discurso feminista, galgado na denúncia contra o estado opressor, contra a omissão e os preconceitos são teias tênues por onde o curta metragem “No coração de Shirley” perpassa. Documentário-denúncia. Fotografia escura. Imagens que se escondem na penumbra da noite. A noite sem regras. Estados de negligência. O estado e sua “lógica” segmentária. “É preciso ser absolutamente moderno”, já dizia o poeta francês Arthur Rimbaud. Estar a frente, refletir as problemáticas sem pudor. “Ver com olhos livres”. É necessário através da educação, levantar tais temas afim do aperfeiçoamento do bom convívio com a vivência pacífica (e participativa) com a coletividade. É importante , trabalhar, por exemplo, questões de gênero na escola desde os primórdios da criança. A cultura do preconceito é algo histórico, milenar. Está enraizada de forma inconsciente no imaginário das pessoas. É preciso cessar isso. Preconceitos geram traumas, destroem vidas. A imagem da personagem travesti chamada Dória sendo espancada pela polícia (aquela que em tese deveria nos proteger) apenas por não se encaixar nos padrões da dita “família tradicional brasileira” é de cortar o coração. O grito da Dória é o grito que ecoa das minorias. Grito de dor e desespero. A educação se assim quiser se chamar revolucionária (como sonhava Paulo Freire) é necessário sim debater e levantar tais problemáticas tanto no ensino fundamental quanto médio e inclusive também na academia.
Corpo, gênero e preconceito: palavras chaves dessa obra cinematográfica. A arte, pelo viés da liberdade da consciência, dentro de um processo educacional, seria ferramenta eficaz para a transformação do indivíduo preconceituoso para um indivíduo mais tolerante com as diferenças. Entender que viver em um mundo rodeado de diferenças que é interessante. Tais aprisionamentos são construções sociais. Precisamos derrubar tais entraves. “No coração de Shirley” fala de fronteiras o tempo todo. Fronteiras que criamos e que, pela cegueira existencial, nos impede de ver e sentir claramente a vida. Fronteiras que nos cegam os olhos. Fronteiras que nos afastam do outro. Fronteiras que geram ódio. Fronteiras que geram violência. Voltar enfim, à máxima oswaldiana: “ver com olhos livres”.
Vinte minutos de uma obra que nos tira da zona de conforto e sacode nosso ser. A fotografia da Mush Emmons dá um toque dramático à obra. Uma fotografia de penumbra que pouco revela as faces dos personagens. A cena de violência acompanhada de músicas atípicas a esse tipo de cena (músicas dançantes, romantizadas) dá um ar paradoxal ao curta-metragem. O ensino educacional através de debates, mesas redondas (não fazendo uso da ideia de hierarquia), numa conversa linear e aberta, usando de artifícios e linguagens próprias a cada fase do indivíduo (criança, adolescente, etc) poderia contribuir de forma positiva para a criação de gerações menos preconceituosas e violentas. No ensino de arte exemplos como o movimento Queer seria interessante serem trabalhados em sala de aula. E eu ouço Dora. Seus gritos ecoam em minha alma. Seu sangue é nosso sangue. Sua força é nossa força. Seu silêncio é nosso silêncio. Somos uno. Não há ninguém imune a coletividade. “Cada bala de fuzil é uma lágrima de oxalá”. E que cada lágrima se transforme em energia, força, respeito e união.

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