A construção em camadas d’A inevitável fraqueza da carne

Por Rita Apoena

No surpreendente romance de Wilson Gorj, A inevitável fraqueza da carne (Editora Penalux, 2023), temos uma narrativa que se impõe ao leitor, que o fisga desde a primeira frase e não o deixa abandonar a leitura antes da sua completa finalização. Isso porque a verossimilhança é plenamente alcançada pela bem elaborada construção das personagens. É por meio de suas atitudes e de suas interações que a sua psicologia resplandece, bem como os conflitos que os movem.

Como o romance mais interno é construído por uma das personagens – e temos aqui um romance dentro do outro – não temos elucubrações que o autor-personagem não poderia saber. Assim, os focos narrativos são usados de modo muito assertivo. Ponto para ele: a narrativa ganha em agilidade. Além disso, a linguagem é concisa, as cenas são dinâmicas, cirurgicamente colocadas, de modo que cada elemento em cena tenha um sentido preciso e profundo no texto. É como se, por trás de um texto “enxuto”, fossem escondidas muitas metáforas nas entrelinhas, de modo a ampliar a significação de cada elemento de criação.

Nessa narrativa, temos poucos personagens, mas habilmente construídos. Carlos é contador e um dos sócios de um escritório de contabilidade. Tendo estudado com o sócio na faculdade, mantém com ele boas relações. Há quatro anos, ele é casado com Luísa, uma mulher que tange a superficialidade das relações e que não demonstra muita sensibilidade por aqueles que a rodeiam. Quando Carlos perde o pai, ela não finge condolências nem se mostra muito sensível ao fato, mas imediatamente anima-se com o anúncio de uma herança, pois ela tinha por objetivo viajar para a Europa e decorar o quarto do filho que tanto esperava. Por mais que tentassem, entretanto, a gravidez nunca acontecia.

Ao longo de toda a narrativa, vemos a personalidade de Luísa ser construída paulatinamente e de forma bastante coerente, de modo a corresponder aos desenlaces da trama. Ao visitarem a propriedade, ela decepciona-se com o testamento modesto deixado para o marido, pois isto a afastaria do sonho de fazer uma grande viagem. Essa insatisfação é tão grande que ela cogita  contratar um advogado para reaverem parte do apartamento que o pai deixara à ex-companheira.

De todo modo, vemos como Carlos vai aos poucos se subjugando frente aos sonhos e aos desejos de sua esposa. Ela geralmente não o questiona quanto aos planos em comum, ela os arregimenta por conta própria, ainda que ele tenha sido o único herdeiro. Mesmo os seus momentos íntimos não parecem ser por afeição ao esposo ou à construção da relação, mas unicamente para alcançar o seu objetivo: engravidar. Assim, Luísa parece ser, na trama, uma mulher um tanto egoísta, fútil e cegamente obstinada. Carlos, por sua vez, mostra-se muito pacífico e condescendente com todos que o cercam. Ele não é, contudo, um personagem sem falhas: ele abarca em si as vulnerabilidades e hesitações de um ser humano real. De qualquer modo, sabemos que um impulso não satisfeito, especialmente no que concerne aos desejos, mantém-se adormecido, mas luta por vir à tona, romper os mecanismos de defesa e se satisfazer. A meu ver, esse é o grande embate desse romance: a discussão sobre os instintos e a natureza humana. Por que não dizer: a própria natureza animal.

No início do romance, ficamos sabendo que a a mãe de Carlos, uma mulher forte e considerada por ele como a sua grande heroína, sofre de Alzheimer e vive numa casa de repouso, o que deixa Carlos um tanto culpado, pois a mãe, durante toda a sua vida, havia se sacrificado por ele. Mas ele tenta ser um bom filho, na medida do possível: diante da doença da mãe, assegura-lhe a estadia no melhor asilo da região, visita-a com frequência e lhe leva as suas flores preferidas. Tenta lhe proporcionar a vida mais digna que é capaz. Algumas vezes, tem de acompanhar o seu discurso em demência. Outras vezes, contudo, tem de mentir, dizendo-lhe que a levaria para casa.

Por razões que vamos descobrir no desenrolar da trama, o seu pai fora um homem muito distante. Desde criança, quando ele deixou a família para viver com a amante, Carlos e ele não mantinham quaisquer vínculos. Mas, com o tempo, o ressentimento que Carlos sentia pelo pai foi se desvanecendo. Desse modo, vemos que Carlos tenta ser um bom filho e um bom marido, ainda que as intercorrências do destino o coloquem muitas vezes à prova. Quando os vieses desse destino começam a suceder, ele é um homem em desamparo, em busca da sua família perdida, e que ele vira se esfacelar.

Com a morte do pai, Carlos recebe uma chácara como herança, e é a partir desse fato que a trama começa a se desenvolver, pois, com as idas frequentes à nova propriedade, Carlos conhece Maya, a filha dos caseiros, uma jovem muito bonita, estudante de Letras, por quem ele se sente imediatamente atraído. Quando ele a encontra pela primeira vez, ela lê um romance de Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, que serve de referência e epígrafe ao belo romance de Gorj.

A jovem parece perceber o seu interesse por ela e não se mostra arredia, pelo contrário. A partir daí, Carlos empreende uma luta com aquilo que ele acha certo e os desígnios do seu desejo. Essa metáfora é ilustrada pelas repetidas aparições de uma jaguatirica nas imediações da chácara. Guiada por seus instintos e por sua fome, o animal busca as aves do local, mas é impedida pelas cercas de arame e pelos ferozes cachorros da residência. De modo análogo, Carlos também é, a princípio, impedido pelas circunstâncias, pela sua postura ética e pelas descobertas que faz.

O desenlace desse conflito é resolvido de modo surpreendente pelo autor, com uma reviravolta muito inteligente na trama. Além dela, o que mais surpreende na narrativa é o modo como o autor joga com as instâncias do real, criando várias camadas de realidade, como um romance por dentro de outro. Desse modo, há uma tênue linha divisória entre a ficção e a realidade, o que nos faz perguntar o que seria real e o que seria ficcionalizado, convidando-nos a outras leituras. Também surpreende, como dissemos, o modo como a narrativa ganha extrema fluidez, a ponto de não querermos deixar o livro antes da sua completa finalização.

Escreve o autor: “Os cães do caseiro, na casa ao lado, latiam sem parar. No galinheiro, as aves também pareciam alvoroçadas. Ele apontou a lanterna naquela direção e teve um sobressalto: a luz devolveu dois olhos vermelhos olhando fixos para ele […] Os dois, homem e felino, ficaram se mirando por um tempo […]. Como nas ocasiões anteriores, o facho da lanterna tinha o efeito de inibir seus movimentos, deixando-a sem ação imediata: as patas dianteiras já tocavam o grosso galho que se projetava sobre o muro. Ela virou a cabeça um pouco para trás […] e, saltando sobre o galho, avançou para dentro da árvore engolida pela escuridão.”

Como se vê, neste romance, a poesia de Wilson Gorj está na escolha cuidadosa de cada um dos elementos que compõem as inúmeras metáforas do texto. E essa percepção se aprofunda à medida que novas releituras são feitas. Essa construção em camadas só é possível em grandes obras literárias, feita por grandes autores.

Rita Apoena, escritora

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