A fera

Por Milton T. Mendonça

Esmeralda desceu correndo a escada do prédio na semi-escuridão, abriu a porta do saguão e saiu à rua vazia, horas antes do amanhecer. Gritou por socorro várias vezes antes de ser atacada pelo imenso animal que saltou da janela de seu apartamento a atingindo em cheio pelas costas. O choque a lançou para frente, atirando a fera de encontro à parede, desacordando-a.

Ao perceber a besta caída no chão, aproveitou para correr desabalada rua acima, dobrando a esquina. Passou rente a um prédio todo iluminado onde se via, através do vidro translúcido, um homem adormecido no balcão do porteiro. Bateu ansiosa o acordando, que sonolento, caminhou em sua direção.

Com gestos veementes implorou que abrisse a porta, se jogando para dentro. Puxou-o para os fundos, assim que a porta abriu, se escondendo atrás da pilastra.

– O monstro! – exclamou apavorada – tem um monstro atrás de mim! Ajude-me por favor!
– Como?! Um monstro? Do que é que a senhora está falando?
– Um monstro enorme me atacou! Está atrás de mim!
– Acalme-se, não estou entendendo nada. Quer que eu chame alguém?
– O senhor não está entendendo, tem um monstro me procurando, ele quer me matar…

Esmeralda começou a chorar, mostrando o líquido vermelho que pingava de seu braço. O homem, de má vontade, não tendo como delegar, limpou o ferimento precariamente deixando a mostra um corte perpendicular, o amarrando com um lenço sujo e estancando o fluxo de sangue.

– Você tomou alguma droga? Isto está parecendo um tombo! Você levou um tombo?
– Não! Um monstro me atacou e me mordeu.
– Não existem monstros, minha filha. Você provavelmente tomou alguma droga e está vendo coisas.
– Eu já disse que não! Um monstro enorme invadiu meu apartamento e tentou me matar. Saí correndo e não sei como, ele bateu na parede, e desmaiou. Consegui chegar até aqui e vi o senhor dormindo lá no balcão. Foi isso que aconteceu! Não tomei droga nenhuma…
– Mas como ele entrou em seu apartamento?
– Não sei! Estava com um amigo que conheci hoje a tarde no shopping e quando dei por mim o monstro estava lá tentando me morder.
– E o seu amigo? Que fim levou?
– Não sei! Deve estar lá no apartamento. No susto saí correndo, nem me lembrei dele.
– Não sei não! Descanse, vamos esperar amanhecer, ainda acho que você tomou alguma droga…

Esmeralda o olhou gélida enquanto uma raiva intensa subia pelo seu peito, mas não disse nada. Deitou-se no chão e ficou em silêncio rezando para que aquilo não a encontrasse novamente. O vigia retornou à sua mesa como se nada tivesse acontecido, deitou a cabeça no braço e voltou a dormir.
Finalmente amanhecera, o sol brilhou aconchegante fazendo despertar o dia. Esmeralda se levantou e sem se despedir abandonou o edifício. Na rua voltou sua atenção para a fachada do prédio e lera: edifício Souza Aguiar – escritórios comerciais e clínicas odontológicas.

Voltou ao apartamento o encontrando como deixara na noite anterior. Vasculhou seu interior, olhando diligentemente todo lugar, mesmo os mais absurdos, mas nada encontrou de suspeito, nem mesmo o amigo, que desaparecera sem deixar rastro.

Pensou em procurar a polícia, mas a dúvida levantada pelo vigia e a falta de provas a fizeram desistir. A lembrança do homem em seu cubículo, na portaria, a deixou imensamente irritada fazendo soltar impropérios pouco usuais. Sentiu vontade de estrangulá-lo, se espantando com essa idéia. Sempre fora tranqüila e propensa a deixar prá lá qualquer tipo de violência.

Pouco depois das sete horas saiu para trabalhar procurando esquecer a noite anterior, passou o dia nos seus afazeres de secretária, nada comentando com medo de virar piada entre os amigos, findando o dia com uma vaga lembrança dos acontecimentos. Como num sonho.

Voltou para casa e se preparou para uma noite tranqüila em frente a TV. “É do que preciso” – resmungou enquanto preparava o jantar. Abriu uma cerveja – para relaxar – e a tomou enquanto cozinhava.

A madrugada principiara havia pouco quando Esmeralda acordou sobressaltada, uma raiva desconhecida invadiu seu peito a fazendo blasfemar contra tudo que acreditava ser sagrado. Levantou-se possessa chutando a parede até sangrar. Lembrou-se do vigia e sentiu ódio, queria matá-lo, mastigá-lo até os ossos. Sorriu, sentindo o prazer antecipado. Abriu a porta, o corredor estava silencioso. Desceu a escada pisando firme, degrau-a-degrau. Olhou as mãos e percebeu que mudara, pelos e unhas cresciam descontroladamente. Sentia-se maior, mais forte. Saiu à rua e caminhou em direção ao edifício, encostando-se na porta a procura do infeliz deitado sobre os braços, no balcão. O reflexo da fera a encarou no momento que partia o vidro e corria esfomeada em busca de sua vítima.

2017

Sobre Quênia Lalita 434 Artigos
Quênia Lalita escreve poesia. É ilustradora, tradutora e faz revisão de textos. E mora em São José dos Campos, SP

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