Ode (em prosa) ao amor.

foto: http://www.stoomtrein.org/

 

Ode (em prosa) ao amor.

Por Milton T. Mendonça

“Valdemar!” – gritou o maquinista entusiasmado – “Bota mais carvão nessa coisa! Chegou nossa hora! Vamos mostrar pra essa gente…”

Valdemar olhou para fora, a linha do trem corria desabalada como nunca vira antes. O medo arrepiou sua pele e uma dor lancinante percorreu sua coluna. O motorneiro, excitado, segurava firme a ferragem. Sua boca contorcida pelo sorriso extravagante transformava seu rosto em uma mascara bizarra, viu loucura nos seus olhos.

Encheu a pá e jogou na fornalha. A máquina saltou feito um potro selvagem, entrando mais profundamente na noite que chegava radiante. Estava exausto. Admirou as chamas chicoteando os pedaços negros de carvão. Sob os pés sentiu a força da locomotiva aumentando, sentou-se no chão tentando se recuperar. O bólido corria descendo a montanha. Ao longe se via a planície esparramada em torno da pequena cidade que deveriam atravessar antes de chegar ao destino.

“Valdemar!” Gritou novamente exigindo atenção. Seus olhos percorreram toda extensão do braço do homem que apontava e viu ao longe a multidão aglomerada nos dois lados da linha. Esperavam com grande alarido a passagem da máquina veloz. A orquestra tocava num silêncio agitado e o movimento das pessoas era percebido em câmara lenta. A cidade inteira estava lá. O prefeito e sua comitiva controlavam o tempo com o cronômetro tosco fabricado na oficina da empresa ferroviária. Clotilde sentada com os amigos, no palanque do lado oposto, esperava ansiosa sua passagem.

“Valdemar!” – o condutor gritou eufórico – jogue mais carvão que estamos perdendo força! Pegou a pá e novamente começou a enfiar carvão naquela boca negra, fazendo cuspir fogo em sua direção. O trem deu outro salto e aumentou mais ainda sua velocidade. Ouviu o assoalho ranger ao passar voando pela cidade. Os aplausos explodiram na multidão estupidificada com o espetáculo.

O prefeito se levantou e a comitiva, prevendo sua intenção, jogou flores e papel picado, criando uma nuvem colorida que se espalhou em todas direções. Viu Clotilde jogar beijos, encantada com sua proeza. O barulho inesperado penetrou seus ouvidos atentos… foi o primeiro a saber.

“Valdemar!” – como se levasse um choque, ouviu alguém chamar o seu nome. Abriu os olhos e viu a parede branca, inexpressiva, ao seu redor. Olhou suas mãos enrugadas pelo tempo e sentiu, mais do que viu, as estrias profundas em volta dos olhos, os cabelos brancos, o cansaço do corpo. Os filhos, em torno da cama, choravam comovidos enquanto enfermeiras tiravam os tubos de seu nariz e veias desligando a máquina. Nada sentia a não ser uma leve curiosidade e uma falta de compreensão atípica. Procurou Clotilde, sua mulher, não encontrou. Viu o corpo estendido na cama, coberto dos pés à cabeça e sentiu um calafrio: será ela? Perguntou-se sem emoção.

“Valdemar!” – A voz insistente o chamou – Olhou a mesa do outro lado do quarto. O caixão todo preto jazia imóvel, com velas ao redor. Caminhou lentamente ao seu encontro temeroso. “Onde está Clotilde?” Fez-se uma ligeira confusão em sua mente. Sentiu tontura e fechou os olhos.

“Valdemar!” – ouviu de novo – Com as pálpebras abertas, mas com a visão turva, sentiu cheiro de sangue e fumaça. Tudo em redor era confusão: cavalos corriam pra lá e pra cá, gritos de dor se confundiam com estrondos e estampidos. Apoiou-se nos cotovelos e tentou se levantar. Uma fileira de soldados, baioneta em riste, vinha em sua direção. Gritou várias vezes sem resultado. sentiu uma mão segurando seu ombro: “Socorro!” – alguém gritou em seu ouvido. “Clotilde?” – Chamou indeciso. Sombras se projetaram afastando a luz de seu rosto. A dor aguda no peito se confundiu com o brilho prateado das armas. Seu cérebro explodiu mergulhando no silêncio.

“Valdemar!” “Sim” – respondeu – “É você Clotilde?” – Alguém tentava levantá-lo. A floresta estava úmida da chuva recente. O ar, em forma de brisa, soprava em seu rosto espalhando sua barba desgrenhada. A flecha, ainda enterrada no corpo o deixava dormente. Aspirou o ar leve da montanha. Sorriu. Uma paz reconfortante se espalhou pelo estômago, braço, peito, pernas. De relance viu um gamo se esgueirar pelas árvores curioso. O céu alaranjado recebeu o sol morno que se deitou para descansar depois de um dia árduo e comprido, fazendo descer um véu, a princípio azul, depois negro retinto. Num piscar de olhos se transformou em um azul clarinho, brilhante, quase branco.

“Valdemar!” Levantou-se de um salto. O navio grande, cheio de ferramentas, descia o rio. Chegou à amurada. A água tranqüila deslizava em volta do barco. Alguém gritava ordens para o grupo de homens que corria por todo lado como formigas. A grande vela quadrada o empurrava fazendo deslizar pelo rio de água suja e profunda. Nas margens, lavradores plantavam vinhas ou pastoreavam ovelhas que baliam incomodadas. Mulheres com os vestidos até a cintura lavavam as roupas da família e riam comentando sobre a vida alheia, uma com as outras. O ar morno da manha o deixou com sono. Debruçou-se à amurada e tentou molhar o rosto nos respingos das ondas quebradas no casco abaulado, repleto de craca. De repente, por um descuido, o joelho deslizou em falso e o corpo foi arremessado para frente. Caiu no vazio. Tentou segurar a respiração quando sua cabeça entrou violentamente na água. Seus pensamentos voaram até Clotilde.

“Valdemar!” Ouviu chamá-lo. Lá fora alguém gritava seu nome. Levantou-se cambaleando e se aproximou da janela estreita. Ao longe, a montanha cuspia fogo. Corrente de lava descia a encosta. O céu escuro pela fuligem queimava o oxigênio dificultando a respiração. Viu a pessoa que o chamava – “ah, Clotilde!” – cair desfalecida. Procurou a porta, seu corpo pesado ofegava. A lava o cobriu rapidamente desaparecendo toda dor.

“Valdemar!” De novo esta voz – pensou irado. Teve medo de abrir os olhos e se encontrar longe de Clotilde. Sentiu as mãos leves e macias tocando seu rosto. Passou o braço e agarrou sua cintura fina. Sentiu o perfume suave do seu colo e a abraçou mais forte tocando o nariz em sua pele. Abriu os olhos e o amplo quarto se desvendou como sempre, claro, alegre, ventilado, aconchegante. Observou o rosto de Clotilde e uma saudade secular o abateu. Deixou cair a cabeça sobre o tecido grosseiro.

Ouviu murmúrios ansiosos. Levantou-se, se vestiu apressado e empurrou a porta grossa de madeira maciça a abrindo sem muito esforço. Soldados de vigia o saudaram com respeito. O General vestindo o uniforme oriental se aproximou agitado lhe estendendo a mensagem. Leu-a nervoso. Sem nenhum comentário voltou para o aposento de onde havia saído. Deitou-se na cama ao lado de sua amada, um sentimento de perda invadiu seu peito trazendo à boca um gosto ruim. Sentiu medo mas nada disse. Olhou-a com grande atenção tentando guardar sua imagem na memória. Chamou seu nome muitas vezes, enquanto a amava desesperado.

Ouviu o sino de alerta tocar mas não se importou. Sabia que tudo estava perdido. Bateram à porta, insistente. Levantou-se, vestiu a armadura, colocou a espada, símbolo de seu reino, na bainha. Beijou Clotilde pela última vez. Pegou a mensagem e releu: diplomacia fracassada, o ataque começará ao amanhecer. E saiu apressado.

2017

Sobre Quênia Lalita 434 Artigos
Quênia Lalita escreve poesia. É ilustradora, tradutora e faz revisão de textos. E mora em São José dos Campos, SP

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